DIAS DE MELANCOLIA (2)

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A Internação

 

"Quando contemplo, da minha janela, o sol matutino rasgar a bruma sobre a colina distante, iluminando a campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o riacho tranqüilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros desfolhados, essa natureza me parece fria e inanimada como uma estampa colorida. Todos esses encantos não podem fazer subir do coração ao cérebro a menor sensação de felicidade, e todo o meu ser permanece perante Deus como uma fonte estancada, como uma ânfora vazia!" (Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther)

A natureza humana tem seus limites; um homem pode suportar até por certo ponto, a melancolia e a dor, mas passando deste ponto ele sucumbe. A questão não é, pois, saber se ele é fraco ou forte, mas se pode suportar o peso de seus sofrimentos, quer morais, quer físicos. A dor sempre crescente privou-me de toda a força de vontade e lançou-me ao solo, e as idéias de morte se fixaram. Preciso de ajuda, urgente!

Idéias de suicídio ou morte freqüentemente acompanham a depressão.

ü   Paciente é portador do transtorno bipolar de humor

ü   Paciente com tendências suicidas intermitentes.

ü   Paciente continua a apresentar sério risco suicida.

ü   Paciente não aceita hospitalização porque tem pavor de ser trancafiado, não quer se afastar do ambiente familiar.

ü   Desespero quanto ao futuro.

ü   Paciente reluta em estar com pessoas porque acredita que sua depressão é um peso intolerável para os outros.

ü   Com medo de sair do meu consultório. Não dorme há dias. Desesperado. Sem esperanças.

Meu médico tentou repetidas vezes internar-me num hospital psiquiátrico. Ele estava convencido de que a eletroconvulsoterapia (ECT) era o único tratamento apropriado, no momento, para preservar minha vida. Recusava-me.

Eu não conseguia imaginar algo mais desumano. Tanto a internação quanto o tratamento. A idéia de ser trancafiado, de não ter acesso ao mundo exterior, de ficar afastado do ambiente familiar, de ter de freqüentar reuniões de terapia em grupo, de ter de suportar as invasões de privacidade, me apavoravam.

“Eles possuem o terrível poder de lhe adormecer; e, durante o sono, roubam-lhe o pensamento, ou melhor, sua alma; esse santuário, esse recesso do Eu, lugar que julgamos impenetrável, refúgio dos indecifráveis pensamentos, de tudo que ocultamos, de tudo quanto amamos, de tudo que desejamos furtar aos olhos humanos. E eles a abrem, a escancaram, não é isso algo atroz?” (¹)

Enfim fui convencido pelo meu médico, pelos meus familiares, pelos amigos e pelo próprio amor a vida.

De chegada vestiram-me um pijama feito de um tecido muito parecido com aqueles usados pelos lutadores de arte marcial, com uma cor amarelada por cima do que um dia já fora branco. O jantar, item obrigatório, era às quatro da tarde. Vi pacientes em celas acolchoadas. Ouvi gritos e gargalhadas tão horríveis que deixariam envergonhado qualquer bom diretor de filme de terror.

Finalmente chegou o dia da terapia de choque. É um processo físico terrível (hoje o uso de anestesia geral e relaxante muscular protege os pacientes de traumatismos e evita a dor durante a ECT). O médico que o administrava parecia ter saído de um dos círculos infernais de Dante e só nos faltava dizer: chegastes almas culposas!

Os tratamentos eram aplicados no subsolo do hospital. Todos os pacientes que seriam submetidos ao ECT, naquele dia, desciam até lá, nas profundezas do inferno de Dante. Usávamos, todos, roupões de banho e sentíamo-nos, ali, enfileirados, como presidiários, só faltavam as correntes. Durante a espera, confortávamos-nos, pois, estávamos desesperados e aterrorizados.

Na sala de choque havia um engenho do qual se poderia dizer que faz o trabalho de uma cadeira elétrica. Era um procedimento, simples, rápido, quase indolor, mas que nunca se quer repetir a dose. Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de uma cruz, e como uma coroa, eletretos em cada lado da cabeça. Zap! A eletricidade atravessava o cérebro e íamos para o "inferno”.

 Terminado o procedimento, você fica fora do mundo de seis horas a três dias, (depende do indivíduo). Mesmo quando você recobra a consciência fica num estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar coerentemente. Não consegue lembrar-se das coisas. Ainda hoje não me lembro das conversas que tive nos dias subsequentes. Não consegue executar uma simples tarefa como dobrar um papel. Aos poucos, porém, tudo começa a funcionar melhor. Apesar das sequelas, foi o tratamento de choque que me salvou. A morte foi embora. Os momentos ruins foram suavizados e com os remédios comecei a melhorar; tanto que me foi permitido usar um lápis, ter um caderno e com eles criei um personagem, protagonista das "Cartas de um Louco", um amigo: o Maluco Beleza.

Um mês depois, quando as portas de meu refúgio foram abertas e poderia voltar ao meu mundo, uma expectativa me dominava: como me sentiria nele?

Caminhei relutante até a porta que dava acesso a sala de espera, lá estavam minha mãe e minha noiva; descemos a escadaria, e chegamos aos jardins que circundavam a entrada da clínica; quando vi aquele céu infinitamente azul, o colorido das flores e senti a brisa perfumada daquela manhã, não pude conter as lágrimas e chorei.

Naquele espelho,

Os olhos que via,

Não eram meus olhos;

Eram os olhos da minha dor.

Naquele espelho via uma criatura que não conhecia, mas com quem deveria conviver e dividir minha mente, até que ela fosse embora.

A depressão é apavorante demais, e por mais que eu tente descrevê-la, ela não cabe em palavras sons e imagens. Ela lhe tira a capacidade de aproveitar a vida, de caminhar, de conversar. Ela lhe tira a paz através dos terrores noturnos, e dos diurnos. Não há nada de bom que dela se possa dizer. Outras pessoas insinuam que sabem o que é estar deprimido; elas podem até achar, mas não sabem. Só quem passou por ela, que viu sua face, sabe como ela é: insuportável.

No entanto, ela me ensinou a aproveitar mais o meu dia, a enxergar o que há de melhor e de pior nas pessoas. Conheci os limites de minha mente e de meu coração, e percebi como os dois são frágeis. ®Sérgio.

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(1) Baseado em um trecho de “O Louco" de Guy de Maupassant.

Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário.

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