Deixei pra trás...
Deixei pra trás...
Deixei pra trás tanta coisa...ai que pena...deveria ter resgatado algumas, mas, não deu. Parto sempre nua.
Deixei um pátio enorme, de uma igreja enorme, cheio de pessoas com véus nas cabeças e seus melhores vestidos. Pátio que nos servia de palco para ver o sol escorregar na ladeira da Borborema e ir mergulhar vermelho, vermelho nas águas do rio Sanhauá.
Deixei tantas coisas por omissão, por covardia, outras por puro acaso ou destino. Mas, elas foram se repartindo de mim, nesga à nesga, me deixando cada vez menor.No meu rastro, deixei cair poemas, poetas, amores, desamores e dores, muitas dores.
Deixei prá trás o trem que me levava ao sonho...aquela máquina fumacenta e falante que me assustava a cada resfolegar. E, a cada ronco, mais perto eu chegava de manitú, não o deus dos índios, mas, o meu.
Foram tantas as estações que já nem lembro. Foram tantas as malas feitas e desfeitas, novamente refeitas, que se perderam nas brumas do passado. Foram tantos os ganhos e as perdas que se juntaram formando um enorme farnel de lembranças...pouco importa se ganhos ou perdas, o tempo as igualou.
Deixei para trás um amor puro de um visionário lúdico que insistia em me amar e que me deixou os filhos que pari, esses eu não os perdí.
Deixei prá trás um sonho de liberdade, como só os poetas sabem sonhar.
Deixei pessoas, coisas, bichos...muitos. Um jumento quase humano que me fez acreditar o quanto éramos parecidos, nós e ele. Uma vaca de nome bordada, magra, magra, preta e branca, mansa, mansa...
Deixei um pé de jasmim vapor, cujo cheiro entrava no meu quarto, tres pés de tâmara e duas palmeiras. Mas, continuei com alma de cigana que nunca se acalma, conforma ou satisfaz.
Deixei uma rua comprida, deixei pessoas amigas, outras, nem tanto.
Deixei que os dias, meses e anos escorrecem por entre meus dedos, quase sem notar.
Deixei sonhos incompletos, outros nem sonhei, deixei-os por sonhar.
Deixei amores vividos, resolvidos, outros nem olhei, nem percebi.
À cada parada morro,divulgo meu fim, mas renasço qual fênix para conhecer e viver uma nova estação.
Que essa estação que estou entrando, possa aplacar meu coração cigano, me faça baixar a guarda, esquecer as malas, e, enfim, encerrar minha viagem.