Despedida

Despedida

Não me lembro exatamente o dia em que me apaixonei por ela. Acho que veio de repente, sem planejamento nem espera.

Talvez tivesse que acontecer mesmo assim. Não é assim que acontece a todos os garotos ? Ou ao menos à quase totalidade deles ? Um dia a cobiça por ela nos assalta, mas começa bem de manso. Nasce com uma vontadezinha, uma curiosidade, uma vontade de tocar e ser tocado.

Claro, tem um medo também. Medo de que ela não se ajeite com a gente, que se sinta amedrontada ou mal tratada e fuja espavorida.

Nos primeiros encontros eu sucumbia ás mil toneladas da timidez, fogo no rosto da certeza de todo mundo estar olhando.

Mas ela parecia gostar da minha presença, não se evadia ao meu toque. Antes ao contrário: de algum modo, me buscava entre tantos, não somente a mim, mas quando a mim, portava-se enternecida, sestrosa, brilhante, macia.

Eu era um garoto pobre, e ela me acompanhava nisto. Ao dançar nas nossas pistas poeirentas, se adaptava, se moldava como se fizesse parte. Mas é verdade que às vezes eu a vi bailando em pistas de dança lindas, limpas, iluminadas e intocáveis.

Eu a via de fora, em pé nalguma cerca, ou empoleirado em algum vão de escadaria. Eu não podia entrar e vê-la dançando de perto, ela não podia sair e brincar nas pistas de dança poeirentas onde eu tinha entrada garantida.

E nesses lugares ela era tão linda, tão alva, tão sublime em contato com o chão impecavelmente equilibrado da pista de dança. Mesmo assim em tão nobre pavimento, havia parceiros de dança que não a mereciam nem de longe. A faziam se entortar com violência, aplicavam passos deselegantes que a faziam sofrer.

Eu ficava então pensando que devolveria a ela o prazer e a alegria da suavidade da elegância e do bem querer de dançar com maestria, com a cabeça levantada, com a inteligência pactuando com todos os músculos do corpo.

E assim haveria de vê-la feliz e leve, solta como floco de neve ao sol abrasante.

Então fomos crescendo, eu e ela nos tornando mais íntimos, mais unidos, mais experientes até. Já não era mais aquela paixão açodada que tinha por ela, mas o amor sereno e maduro, imune a qualquer outra paixão que pudesse me provocar.

Vieram os tempos de maior cautela, então confesso que já não a via com tanta freqüência, já não a sentia escorregar pelo meu corpo como criança levada de escorregador. Diminuímos nossas danças.

Mas creio que ela compreendeu. Nunca reclamou, e certamente há de ter rido muito quando lhe confessei que, para dormir, pensava nela, trocava os carneirinhos por nossos encontros do passado.

E de como nestes sonhos eu a fazia dançar até o êxtase, ela feliz rolando ao som de rocks dos anos 80, quando tínhamos por volta dos 22 anos, e fizemos certamente nossas melhores performances.

Tudo bem, eu sempre soube que ela não era somente minha.

E compreendo que tinha mesmo que ser assim.

Mas ela me olhava diferente, isto eu juro. Era como se me dissesse em silencio, após cada dança: “Me leva pra casa ?”

Um dia tive que romper com ela. Definitivamente.

E foi como o primeiro dia que a conheci: de repente, sem planejamento nem espera.

Ela não chorou e, como sempre, não reclamou. Apenas ficou me olhando de longe. Assim como eu fico olhando de longe para ela, com vergonha de chegar perto, com medo de tocá-la. E com pavor de não ser mais reconhecido.

Tudo bem, eu reconheço agora que houveram dançarinos muito melhores que eu na vida dela, e que certamente a amaram tanto quanto eu. Eu reconheço, embora o ciúme me devore as vontades e a honestidade.

Convivemos por 40 anos, e hoje somos grandes amigos.

Nas insônias ainda a uso para dormir. E então crio os mais variados e loucos passos de dança, mais rápidos e lindos que Pelé, Garrincha, Zico ou Di Stéfano. E quando damos o passo final da dança, quando carinhosamente a coloco nas redes, peço a ela que bata antes no travessão e vá para o filó, que volte para casa.

Não existe nada mais lindo que ela batendo no travessão e buscando o descanso da rede.

Fazem dois anos que rompi com ela. Definitivamente. E como dói.

Tavianna