Ficção, Ficção
“Soi-même comme un autre”
P. Ricoeur
Esta tarde. Esta tarde decantada. Real, preservada nos símbolos futuros. Hei-de voltar pelo fundo da névoa, o mar arde na luz do ar como um relâmpago. Aqui. Não há nada a explicar, organizo os objectos no olhar, procuro sentir o que eles sentem para lá dos vidros baços onde passa o vento. Procuro eu próprio sentir o que sinto, como um outro que nenhum espelho identifica. Não há nada a explicar. Nenhuma descrição de pormenor me interessa. Apenas a alusão a um cenário abstracto. Uma tarde, possivelmente. Só assim se volta às veias da memória, dissimulado sob o corpo da neblina. Todo o real é ficção. Não sei o que existe, sei o que sou capaz de inventar que existe. A partir de linhas em vagas no passado.
Por isso, esta tarde foi outra tarde, um dia qualquer, com a claridade vulgar que a luz do dia tem. E o mar. O mar seria o mesmo, aves fugidias em sombras velozes no areal. Vozes no circuito da comunicação. Anónimos em passeio, cafés e confeitarias onde se combate a solidão. Não há nada a explicar. Árvores na marginal. Lembro-me de outras árvores, muros altos ou palavras ou frases ou nomes. Lembro-me do que virá ao fundo da névoa inventar os dias. Ser como um outro entre linhas de uma ficção universal. Um exemplo: correr no areal pelas fendas abertas do crepúsculo – até ao brilho ondulado dos teus olhos. Esta tarde.