O Velho Marinheiro

Outro dia, me vi fazendo uma reflexão sobre uma história contada para mim há algum tempo, por um velho marinheiro, companheiro de longas jornadas.

Na ocasião, Correia (esse é o seu nome de guerra) me contou de uma história de amor que tivera, que em nenhum momento assumiu ser um “grande amor”, mas eu, cá com meus botões, avaliei como sendo, considerando os seus olhos avermelhados, sua voz grave, seu tom solene, ao contar detalhes dessa história.

Ele me disse, na ocasião, que se despediu dessa mulher, que seria um de seus amores, talvez o maior, com a seguinte frase:

- Foi por sua felicidade que renunciei ao nosso amor... e à vida. Vá!

Dramático, em minha opinião.

Mas ele defendia a idéia de que não conseguiria ser feliz em terra firme, abandonando a vida marinheira, e ela não seria feliz em estar com alguém que leva a vida que ele leva, um amor em cada porto. Mesmo que não exista esse amor em cada porto, haveria sempre a desconfiança de que assim seria. E para não fazê-la infeliz, seria melhor permitir que fosse para tentar a felicidade com outra pessoa.

E assim teria se decidido encerrar um assunto que começara há um ano e meio da data em que me contou. Dizia-me também, que se o relacionamento continuasse por mais um dia, seria fatal para a sua vida marinheira. Aquela mulher, especial, o tinha cativado. Ele não ousava dizer, mas deduzi que tinha se apaixonado. O velho marinheiro teria sido fisgado.

Lembrei dessa história porque ele me procurou recentemente, quase dois anos depois de ter me contado a primeira versão, para corrigir o discurso. Aquilo o teria incomodado, disse ele. Não sei se o amor que eu supus ele ter ou a justificativa para a partida de seu amor.

No seu novo discurso, ele dizia:

- Não larguei as espias por medo de tempestades...

Entendi que ele quis dizer que teve medo, acovardou-se com a possibilidade de amar e se entregar. Mas a minha opinião era que se mantinha a ferida, embora não pudesse ser conclusivo, considerando o discurso tão curto, partindo de tão poucas palavras.

Na minha reflexão, questionava como um ser assim permitia-se agora, pisar em chão que não balança e fazia uma relação com a covardia humana, que às vezes, esmaga a alma.

Não me contou maiores detalhes, mas vi que seus olhos avermelharam mais uma vez, anos depois de terem se avermelhado contando a mesma história. Ao final ele me pareceu sereno.

Entendi também que ele tinha vivido esses anos com essa mentira atravessada no peito e não sossegou até agora, quando me contou a versão que diz verdadeira, e talvez seja.

Como um navio velho, preso ao cais pelas suas espias, prendera-se à estabilidade. Fincara unhas no que tinha conquistado, nas suas verdades, suas crenças, com medo de ter mais ou de perder o que conquistara.

Pensei com meus botões mais uma vez:

- Ora, o navio velho não flutua o suficiente para a partida, mas é inconcebível que fique. Por outro lado, se enfrenta os mares, pode não chegar ao seu destino, então é inconcebível que vá.

Navio velho é só um navio velho, mas tem alma. Porém, pode virar sucata se não quiser mais ser navio. Temos um dilema, então, a sucata não vai nem fica e não há nobreza no que a sucata é.

Concluí o que seria melhor: Ir e afundar do que ficar e virar sucata.

Correia, em minha opinião, renunciou tarde à vida marinheira, à alma marinheira. Perdeu a grande oportunidade da sua vida de viver um grande amor, por aquilo que julgo covardia. Mas o tempo é inflexível. Agora ele não pode mais, seu corpo já reclama o descanso merecido, trocou o seu navio por um apartamento com vista para o mar.

Ganhou sobrevida, sem salitre.

No seu navio, rasgava o mundo e ia. No seu apartamento o mundo passa e ele fica. Trocou o risco e o riso pelas amarras e amargas espias. Trocou o mar pelo sólido e árido asfalto. Trocou sua vida pela rotina, pela segurança, pela mesmice.

Hoje, o mais próximo que pode ter de uma vida marinheira é ver o mar enquadrado de sua janela e um ou outro navio passando ao longe, que para ele é “passando ao largo”.

Mais uma vez, rumino um pensamento: Como, alguém que viveu para o mar, no mar, pelo mar, pode viver olhando para um único horizonte, imóvel, que não sobe nem desce, não balança nem se aproxima?

Não sei. Sei que se não está feliz, ao menos, está aliviado.

Jan Câmara

12/04/2008