"O penitente"
Ainda no quarto, escondido debaixo da cama, algumas bonecas se deixavam sorrir. Era um sorriso estático, emitidos num breve momento de alegria. Pareciam sintetizar os minutos que se seguiriam após o ranger da porta se abrindo. Com os joelhos penitenciados e as mãos espalmando o chão frio olhou, como num olhar de adeus, os sorrisos congelados das bonecas da filha.
Quando a dor tomou-lhe a lembrança não conseguiu o controle; a testa chocou-se contra o piso, e foi então que sentiu a fria lápide. Ainda que o silêncio daquela noite fria fizesse o romper em gritarias, não demoraria a adormecer. Dentro e fora, não mais havia homem, havia somente órgãos e carne. Movimentos e atos estimulados mecanicamente. A vida lhe deixou marcas e estas estavam ali, esparramadas ao chão daquele esquecido quarto.
Um. Dois, e agora quase três anos se passaram e ainda assim mantém as fotos coladas à porta do quartinho da menina. Dois desenhos, por ela feitos, demonstravam o afeto que reciprocamente sentiam. Um pai ao lado esquerdo, no centro a menina, e à direita uma mãe com sorriso de tristeza. Havia também uma foto-documento: oriunda de um trabalho escolar; era presente para o dia dos pais. Nela, a menina não sorri, mas os olhos riem um sorriso longínquo; daqueles que só se vêem na beira do cais, na dor de uma despedida.
Habituado ao silêncio da alma – que sôfrega definha; chora silencioso a saudade da filha. Na escuridão do apartamento as vozes descontínuas chegam-lhe aos ouvidos, e sonha acordado.