Uma Moeda para Caronte
Atordoado, olhos (L)inchados, o corpo ainda preso à ligação covalente suor-lençol - eletro-negatividade à flor da pele -, mal consegue lembrar das alucinações que permearam sua vigília. A boca, colada pelos lábios ásperos, traz o gosto ruim do dia/noite (o relógio parado na parede do quarto, a metáfora perfeita) posterior às bacantes - seu único modo de combater a insônia-. Riu ao pensar que se a ele fosse bradado “levanta-te e anda”, a religião teria tomado outra importância na condição- falso-maniqueísta - humana.
Os pés frios tocam o tapete enrugado provocando cócegas, ele imagina que seja a única sensação ainda não extirpada do seu corpo. Os mesmos pés que sustentam todo o paralelismo dos seus dias em preto e branco. A inércia da mente novamente confronta o imperativo do corpo. O barulho da água na tubulação o faz rir (teria dito que aprendera a rir de si mesmo com a filosofia alemã), nunca o havia percebido, riso que logo se perde quando a água fria deita sobre a alma dilacerada, diluindo o que restava de quem algum dia se achou apto a ser feliz, “a transcender”, ele dizia. Os olhos perdidos na água que segue uniformemente, levando a sujeira que o tornava humano, o despindo agora de qualquer lembrança, de qualquer sentimento, efeito dominó das vontades.
O movimento mecânico busca a toalha amarga que sempre lhe perscruta o corpo. – “...e após, ermo e tristonho, sob o ventre da terra apodrecer.”- A veia perene da testa, surge como se nutrisse da água que escorre sem tocá-lo, lembrando que a dor já não é sua amiga, enquanto inútil se faz a tentativa de saber de onde surgira aquele verso.
O calor amarelo febril das paredes-deserto fulmina vertiginosamente sua já condescendente coragem, o que o impede de pensar em alguns nomes do passado, o que o impede qualquer pretensão futura, enquanto os passos verdadeiros, pesados, devoram todo o azulejo pelo caminho. Enfim sente o cheiro do sol que violentamente ganha seu espaço, desespera e ilumina... a cabeça no travesseiro, desejando a guilhotina.