2-VIANDANTE ( trilogia dos passos )
A mão reencontrou a forma que ela mesma impôs, muito tempo antes.
Com isso, houve uma espécie de estremecimento no mundo, ao redor.
Uma vibração de ajuste. Um regresso á normalidade.
A mão segurou o cabo do cajado com fluidez.
Percorreu-o em carícias de dedos até ao castão de prata, onde se abrigava o cristal puro.
E estes sentiram a textura, e tatearam os nós, tão conhecidos,
num gesto antigo, que sobrepunha doçura á experimentação.
Foi então que percebeu o corpo inclinando-se para a frente,
num discreto início de movimento, que logo reprimiu.
Os primeiros passos, se os desse, como os pararia ?
Olhou as sandálias de sola grossa, no chão.
Por um momento, pareceu-lhe que voltava a ouvir-lhes a voz
crepitada de quando caminhavam esmagando pequenas pedras
e torrões de terra pelos silêncios ermos dos caminhos, enquanto iam absorvendo as histórias espantosas de tantos lugares.
Mas as velhas sandálias apenas descansavam na sombra da capa de lã e do chapéu, ambos pendurados na parede, junto á grossa porta de madeira, ao lado do alforge de couro escuro, e do cantil.
Todos esses objetos familiares estavam há muito tempo na eminência daquele instante por chegar, cuja aproximação agora se dava num crescendo de tensão quase palpável.
E todos, pela primeira vez, pareciam perceber que isso era partir. Não mais como das outras vezes, quando apenas iam, sabendo que tinham ali o seu ponto de regresso.
Por isso, tudo ao seu redor foi ficando especial, quase mágico,
e uma luz, que parecia vinda do interior das coisas, brilhou suave,
e acrescentou solenidade e honra ao momento.
Por cima de todas as casas, uma leve fumaça ascendia, aromática,
enchendo o vale com sutis aromas de abastança.
Espalhou-a o vento, que não trouxe rumores de passos.
Permaneceram silenciosos os cães, sem ladrar limites.
O dia demorou a amanhecer, envergonhado.
Talvez de ser apenas outro dia.
Março 2009