Princípio 3

“Esta aurora em sombras líquidas”. E era noite.

Não sei se foi durante a noite ou um dia onde fui com a neblina nos ombros. Não sei quem encontrei, se nada disse ou se disse, se aquelas palavras eram tuas ou se foi o meu silêncio que amaste quando cruzámos os dedos. Não sei. Tinha escrito, “esta aurora em sombras líquidas”, mas quando? Na véspera dos teus lábios poisados sobre os meus? Admito, com a noite percorre-se o asfalto sem destino, com a noite os corpos ondulam na sua própria luz.

Fala-me, pela última vez, das cidades invisíveis.

Uma cidade plana, sem nome, impronunciável. Quadriculada. Nenhuma imagem dela ficou ou ficará. Por que será este espaço uma cidade, nele nada existe de real? Ou tudo é mais real e não sabemos. Uma possibilidade aberta. Chega-se a um terreiro, um deserto, um descampado, campo perdido no horizonte, paisagem sem limites, lugar ermo, enfim, pode-se chegar a qualquer hora a este sítio e nada haverá para ver, ouvir, tocar, nada há que se possa sentir. O que é uma cidade? Ligações subterrâneas e aéreas. Não existem. Edifícios e avenidas e praças e rotundas. Nada ali existe de semelhante. Nem o vácuo de uma cidade, porque em todo o lado há o vazio. Nem o silêncio, nada ali existe. Um som de fundo, o eco permanente sem significado, a toponímia indecifrável. Uma fenda no espaço. Um intervalo de silêncio. Por que em todo o lado existe o silêncio. Uma película branca, uma linha. Uma linha, onde estamos. Brecha na memória que não teremos. Instantes vividos que nunca vivemos. Experiência da morte, do amor, do esquecimento, vivência do riso e da dor, palavras da denúncia, um sentimento de infelicidade em dias felizes. A grande dor da alegria. A alegria que regressa quando vamos olhar o nada. A minha impaciência e a minha ironia. Não teremos saudades e nem sei o que se sente. Não sentir, imaginar não sentir, nem ver.

Fala-me, pela última vez, das cidades invisíveis.

Descrevo: este vale e uma noite e uma voz e um cão e a tristeza e a alegria. Alamedas, lojas, táxis, sirenes, janelas, jardins, rotundas, fotografias, depressão, amor, presente, melancolia, mercados, galerias, futuro, o tédio e o suicídio, as neuroses, tudo o mais embrulhado em papéis de angústia. E recordamos a alma das coisas quando vamos, finalmente, viver para um destino, um fim-de-semana para um fim. Imaginamos. Continuo, olho a realidade possível. E. E voltaremos amanhã, preferimos entrar neste espaço de solidão no decorrer da noite, as luzes que vemos na longitude acesas. Imaginamos. Fazemos excursões à imensidão vazia para imaginar, programam-se roteiros, rigorosamente cumpridos, aos lugares inóspitos que se estendem pelos corredores do horizonte. Cada um visita a cidade invisível sem companhia, ninguém quer companhia, não há grupos, há seres terrivelmente sós e cantam e dialogam para si mesmos e encantam-se. A uma hora marcada convocam-nos para sentir. E rimos, o grande riso, o que verdadeiramente se sente. O riso é a anulação da divindade. Queremos sentir e ver. Apelo às emoções que me despertem, me despertem como se fosse a última vez. Dizemos: aqui viemos. Dizemos: estaremos aqui, também nós invisíveis. Escrevo: traçar um lugar, um lugar onde nunca se iria. Ninguém iria. Ninguém veria. Vou repetir-me – sobre mim, um halo de uma sombra inteira, o fluxo do ar soa numa música de folhas -, na imaginação surge um vale, um espaço imenso para sentires o que é impossível. E todos seremos invisíveis. E todos estaremos desde os primeiros sinais do poente para partir. Para sentir e ver, verdadeiramente.

Fala-me das cidades invisíveis, faz crescer nos olhos as aves da visão, torna a noite sublime, absoluta, interminável. Faz crescer no estuário da pele o rio profundo das sensações.

Reunidos a uma hora marcada, no grande vale onde nada existe. A solidão de cada um.

Teremos para descrever o vácuo. A tua luz me ilumina até às veias, a boca me fulmina.

O vácuo, os corpos invisíveis, nada mais imenso para te descrever. Nada mais perfeito.

Em princípio.