[Quando Amanhece]
... Amontoam-se no fundo do meu eu profundo,
— lá, onde mais eu me erro, e distancio-me de mim —,
os meus sonhos fanados, os meus descaminhos,
as certezas desfeitas em pó, as trilhas errosas...
O que é que alguém poderia tanto querer de mim,
se esse alguém apenas tangencia meu eu exterior,
se nem percebe a minha louca variabilidade de ser,
se não sabe que sou apenas e tão somente na duração?
E por que, por que exercer contra mim, contra o meu "eu",
esta tamanha crueldade de querer mais que a duração?
Por que não pensar-me apenas como uma chama,
ou como um sonho que se esvai quando amanhece?
Quando amanhece, lentamente,
a lucidez surge fazendo já cinzas do amor;
e ainda no calor dos lençóis amarrotados,
e numa grotesca epifania de repetentes solicitudes,
instala-se a vã temporalidade das coisas cotidianas.
Ciclos... Quanto entardece, és minha, eu sou teu;
mas quando amanhece... somos fuga,
somos a inexorável revoada dos sonhos;
o amanhecer é só prenúncio de separação!
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[Penas do Desterro, 23 de fevereiro de 2009]