Carta a uma amiga
Não sei por que você não me escreve. A escassez de linhas a mim dirigidas descarrilhou o comboio que levava as minhas esperas e, por isso, esta carta, uma sempre forma de tentar quebrar o gelo que impossibilita os abraços. O que houve? Talvez a vida, sempre turbinada e crua, tenha pulverizado as lembranças e me atirado ao limbo onde mora o esquecimento, esse arquivo morto das vivências.
Admito as minhas errâncias que também desenham meus caminhos marcados pelas ausências até de mim mesmo, embora esse frio de presença humana que aspiro e que me dá falta de ar, incomode como um cisco num olho já míope.
Redescubro a tristeza dos abandonos como quem descobre a pólvora: espanto e medo. Espanto, pelo impacto dos blecautes; medo, pelo avivamento de solidões inconformadas.
Por que você não me escreve? Basta um gesto seu e eu levitarei em gozo pelo céu de sua boca. Lembra desses versos? Mas minha navelíngua não navegou em sua órbita e naufragou num buraco negro antropofágico. Mas, felizmente, não é preciso o beijo para se saber o gosto das amizades, embora sempre exista o risco da insipidez da língua imaginada na boca que se oferece.
Vou assim, convencido do que somos: verso e reverso de uma mesma trama. Corpo, alma e uma miríade de eus embutidos e avessos à luz, que fazem do cogito descartiano não um alívio, mas um ponto nevrálgico de angústia. É isso: somos apenas um ponto num universo em expansão. Em que sonda do sideral espaço estará meu olho vasculhando você? Em que quasar de azar se perdeu a inocência e fez da maçã o proibido fruto? De que costela minha se esculpirá o meu avesso que arrastarei como o Desejo que me situa? Entre o Deus que projetou o Homem e o Homem projetado existe a luz, mas também a sombra que pode ser o Diabo.
Pois é, o seu silêncio constrói a minha solidão e me deixa todo anoitecido como um Portinari, cândido e triste, triste mesmo.