Diário de Bordo

O tempo aqui não passa. Dias, horas e minutos se confundem. Se sei que já é quase noite é porque o sol está sumindo no horizonte e tudo a sua volta se faz alaranjado. Hoje o barco não balançou tanto. A náusea tem diminuído, talvez pelo fato do mar estar em constante movimento. Que não importa a situação, boa ou ruim, no final a gente acaba se acostumando.

Estou com sua mensagem nas mãos ainda. Desde o embarque. Desde a despedida. Confesso, ela já perdeu um pouco da beleza: amassou um pouco aqui, rasgou um tantinho ali, guardou algumas lágrimas que escaparam de mim. No entanto, por mais que se desgaste, o valor dela só tem aumentado. É como se você estivesse aqui, ao meu lado, com suas palavras doces que me confundem o tempo todo. O seu querer não querendo que tanto agride o meu é ou não é. Você é todo meio termo, sou toda extremos - não podia ter sido diferente.

Já não vejo coisa alguma. Só água, em todas as direções. Estamos, definitivamente, mais distantes do que nunca. Afinal, estou em alto mar, sabe Deus em que parte do oceano. É meu modo de evitar o sofrimento. Estar longe.

Sei que vai me perdoar por toda essa confusão mental. Você mesmo não tem estado nos seus dias mais decididos. Acho que foi a decisão mais acertada vir embora. Pra um lugar longe de você, longe até mesmo de mim. Longe de mim, sim. De tudo que vivi até hoje, de todos que conheci. Experiências novas me esperam.

Uma criança chorou aqui ontem. Simpatizou comigo só Deus sabe o porquê. Pediu colo, fiquei sem graça, não tive como recusar. Descobri que já não odeio mais crianças como antes. Engraçado - segurei o menininho por, no máximo, cinco minutos. Ele sorriu. Deu-me um beijo. Crianças são gratas como ser humano adulto nenhum o é.

Esta noite pensei na possibilidade de ter filhos. Confesso, pensei na possibilidade de ter filhos com você. Desejei isso. Desejei que esses enjôos não fossem apenas por conta da viagem. Sonhei com eles, com nossos filhos. Está errado, eu sei. Viajei até aqui para esquecer tudo isso, não para aumentar minhas frustrações. Só achei que deveria lhe contar: eles eram lindos. Tinham meus olhos verdes e sua pele branquinha. Victor, o mais velho, era inteligente como você. A menininha era recém-nascida. Não conseguíamos decidir o nome. Infelizmente, o serviço de quarto me acordou antes que pudéssemos ter chegado a algum acordo.

Acabei de receber meu café. Acender um cigarro. Eu sei, você não gosta que eu fume. Também não gosto que você fume - nem por isso lhe pedi para que não o fizesse. São quatro e vinte. Que ironia, quatro e vinte. Nossa hora. Minha e sua. Mais sua que minha. Alterno entre os goles de café e as tragadas no cigarro como quem faz um ritual. Também tenho bebido religiosamente. Poucas vezes no dia falo com alguém. Essa viagem é pra mim. Pra eu me encontrar comigo mesma.

Passo o dia todo olhando o mar. Pensando no que fui, no que virei a ser. A bem da verdade, tudo aqui tem se resumido ao meu querer. E eu fico aqui querendo.

Querendo fugir. Meio sem opções. Fugir da vida e não trombar com a morte não é algo assim muito fácil. Não sei dizer nem se é possível. Tentar eu sei que dá. Tentar eu sei que posso. Mas ainda me faltam opções.

Eu olho pro mar, às vezes eu converso com ele. Mas ele não me responde. Eu fumo, tomo meu café, respiro fundo. Volto a beber - qualquer coisa entre vodka e água, que eu já nem consigo mais distinguir as duas. E espero o tempo passar, como me pediram que fizesse. Quando o navio aportar, quando eu chegar em mina nova casa, quem sabe assim eu consiga finalmente mudar. Esquecer. Ou, que seja, quem sabe eu deixe de viver apenas em função de tentar esquecer, como foi até agora. Tentar esquecer sempre me leva a mesma coisa - a pensar em você. O tempo aqui não passa. Dias, horas e minutos se confundem. Se sei que já é noite é porque tudo escureceu e o céu é um imenso lençol negro sobre mim. Hoje o barco não balançou tanto. A náusea tem diminuído. Não importa a situação, boa ou ruim, no final a gente acaba se acostumando.

Acho que todo meu problema se resume no fato de eu ainda amar você.

Nica
Enviado por Nica em 13/02/2009
Código do texto: T1437641
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