ELISA
Elisa, mocinha ainda, trazendo n’alma um desespero imenso e na face as lágrimas branquinhas a brotarem de seus lindos olhos azuis, passava suas mãos pequenas e acariciantes no rosto pálido e frio de sua mãe, estendida, ereta, sobre a mesa.
Morreram, ali, muitas de suas esperanças mais lindas... Secava a fonte maravilhosa e quente dos carinhos maternais, para nascer, em seu lugar, o espectro da orfandade.
Elisa e seus irmãos não encontravam no pai, compreensão, ternura ou palavras amigas, capazes de atenuar a vastidão dos seus sofrimentos e amarguras, da solidão e do abandono a que foram relegados por sua madastra.
Seus irmãos, à proporção que atingiam a maioridade e até mesmo antes dela, iam deixando a casa, atirando-se à luta pela vida. Suas três irmãs casaram-se. Elisa, todavia, não tivera igual sorte. E agora, que estava só, sem a companhia e carinhos de suas irmãs, tudo ser-lhe-ia mais difícil, de vez que lhe era negado até mesmo as diversões e os bailes – sonhos azuis de toda a mocidade - . A ela se reservavam, apenas, trabalhos, perseguições e desigualdade de tratamento, como se fosse ela uma intrusa, uma renegada...
Elisa já não suportava a carga de tantos sofrimentos, amarguras e incompreesões... Foi quando seu pai, já reformado no posto de major do Exército, resolveu morar numa fazenda de sua propriedade a um uns trinta quilômetros da cidade.
Ali, respirou Elisa, amplamente, o ar puro e gostoso dos campos!... Pela manhã corria para o terreiro a ver o sol radiante, rasgar o horizonte azul, além do qual imaginava outro mundo feliz, sem ódios nem rancores, no qual imperassem, apenas, o amor, a compreensão, a solidariedade... Lá onde deveria estar sua mãe, tão carinhosa e tão boa...
Elisa era menos infeliz agora. Em meio aos elementos, no seio virgem da natureza, aprendeu a amar a solidão, os ermos... Deixava-se, gostosamente, envolver pelo vento morno e acariciante, que lhe esguedelhavam os cabelos finos, loiros e compridos.
H avia ali, um rio, pássaros canoros e as mais lindas noites de lua cheia... Até as perseguições que lhe movia a madastra pareciam arrefecidas. Esse estado d’alma, todavia, durou pouco...
Houve uma festa na vila. A ela compareceu Elisa, em companhia de seus familiares. Estava radiante... Era aquela uma das raras oportunidades que tivera para se divertir um pouco, ver algo diferente, conversar e trocar idéias com alguém...Contudo, no auge de suas vibrações emotivas deixava transparecer de seus gestos, de seu olhar e de seus sorrisos um fundo de amargura e sofrimentos... Era triste até em suas alegrias...
Elisa sentou-se em um banco, a fim de refazer-se do cansaço. Seu olhar penetrante, passeava pelo salão, quando avistou, de pé, em uma das portas, um moço pálido e esbelto, olhar sereno e tranqüilo a fitá-la, embevecido!... Os olhares de ambos se cruzaram. Elisa sentiu um estremecimento estranho, indiscritível... Algo de importante acontecia em sua vida, naquele exato momento!... Seria o amor?!...
Pedro, - assim se chamava o rapaz -, não dançava. Simples e deveras introvertido, viu naquele amor, nascido à primeira vista, um daqueles amores impossíveis, irrealizáveis... A filha do major seria a estrela pequenina e pura, inacessível, a fulgurar lá nas alturas e ele, o pirilampo a ziguezaguear na mata escura, ou, o pigmeu a olhar, eternamente, para cima, na esperança de a estrela solitária e triste, vencer as forças que a sustém no espaço, para descer ao pirilampo, ao pigmeu na terra e dar-lhe um pouco de luz e de calor...
Enquanto esses pensamentos tomavam de assalto o espírito de Pedro, Elisa pensava como deveria ser difícil vencer as forças que se interporiam entre ela e Pedro, no sentido de não se permitir a concretização daquilo que, para sua família, seria um escândalo e uma humilhação...
Contudo, o amor que é divino, que paira muito acima dos preconceitos e misérias humanas, os uniu, para sempre, a partir daquele instante...
No dia seguinte o fato já era de pleno conhecimento da família. A notícia correu celeremente, pela redondeza e o sofrimento de Elisa aumentou... Ela, porém, não desistiu. Lutou, leoninamente, pelo seu amor e venceu, casando-se com Pedro. Seus sonhos eram, agora, realidade palpitante e feliz. Encontrou, afinal, alguém que a queria e amava, apaixonadamente...
Pedro sentia-se, também, o homem mais feliz do mundo.
Era caboclo sim; humilde e pobre caboclo, com alguns alqueires de terra, um gadinho e, agora, um rancho que ele mesmo construiu, com carinho e amor, para morar com Elisa, dona de seu coração, senhora de seu destino...
É bem verdade que Elisa sentira aquela mutação inesperada e, até certo ponto, imprevisível...
Distante estava a casa grande, onde desfrutava de relativo conforto, mas, onde suportara, também, sofrimentos inenarráveis...
Pela primeira vez sentia-se dona de alguma cousa, amada por alguém, desde o dia trágico da morte de sua mãe.
Era com devoção de uma beata que ela, todas as noites, ajoelhava-se diante da imagem de Nossa Senhora, rezava o seu terço para agradecer a Ela pelo pequeno e adorável mundo que lhe ofertara, dentro desse outro mundo amargo e decepcionante. Ali vivia Elisa – rainha de um mundo novo e pequenino -, ao lado de seu rei, a quem amava com todas as veras de seu coração, com toda a intensidade de sua alma sensível e pura... Seu reinado não ia além daquele rancho de chão batido, coberto de sapé; algumas cabeças de gado e outras pequenas criações, dentro de algumas dezenas de alqueires de terra, onde se divisavam, também, os verdes arrozais, o milharal viçoso, o mandiocal em cujas sombras cresciam as melancias de polpas vermelhas e saborosas.
Assim, o tempo foi passando, sem que Elisa se apercebesse de sua marcha inexorável, tal o embevecimento em que vivia ao lado de Pedro e das poucas cousas que possuíam, mas que valiam para ela, mais que todas as riquezas da terra juntas.
Os anos foram passando, um a um, e o lar de Elisa e Pedro se enriquecia com o nascimento dos filhos. As lutas aumentavam e as responsabilidades cresciam... De outro lado, porém, o trabalho honesto e construtivo, de mãos dadas com a terra generosa e boa, criavam perspectivas novas e cada vez mais promissoras.
Os filhos cresciam e já os mais velhos estudavam na vila, enquanto Elisa e Pedro planejavam vender o sítio e mudar-se para a cidade, onde poderiam educá-los e prepará-los para uma luta diferente...
Mas, naquela manhã de um lindo dia de setembro, Pedro saiu a trabalhar o gado no campo. Já ia alto o sol e ele não tornava, como de costume, para o almoço. Todavia, lá pelas duas horas da tarde chegava Pedro, pálido e ofegante.
Procurando tranqüilizar Elisa, dissera-lhe que não se preocupasse com ele, pois havia sofrido, apenas, uma pequena “rodada” (queda de cavalo em corrida) e logo estaria bem, bastando, para tanto, alguns banhos em água canforada e chás de arnica.
Os dias, porém, foram passando sem que Pedro pudesse voltar ao trabalho. Um dia sentiu-se tomado de uma inquietude estranha e de uma febre que o levava ao delírio. Teve um acesso de tosse e de seus lábios, brancos como cera, escaparam duas golfadas de sangue...
Elisa estrangulou na garganta um grito de dor e desespero... Correu à vila a procura do médico e quando este chegou, examinou Pedro e a chamou de lado, percebeu que naquele exato momento teria a confirmação de suas suspeitas: Pedro estava tuberculoso, vitimado pela chamada “peste branca” até então, incurável. Era um condenado e deveria morrer ali mesmo, cercado dos cuidados e carinhos de sua esposa e filhos... Morrer devagarinho, numa agonia muito lenta... Agonia sem perdas de sentido... Agonia de quem assiste ao seu próprio fim e, no derradeiro instante vê o desespero e o pranto estampados no rosto de seus entes queridos, ouvindo-lhes as últimas e angustiantes palavras, sentindo esvair-se-lhe a vida sem poder, contudo, agarrar-se a ela.
Assim morreu Pedro, levando consigo os sonhos dourados de Elisa, suas esperanças, seus dias melhores, mais alegres e inesquecíveis...
Restavam a Elisa os filhos queridos e neles encontraria a razão única de seu viver...
Vendeu o sítio e mudou-se para a cidade, juntamente com seus nove filhos. Comprou uma casa e atirou-se ao trabalho duro e constante, no que era coadjuvada pelos filhos mais velhos. Os primeiros anos, como soe acontecer em circunstâncias tais, foram os mais difíceis... Depois, o filho mais velho, já com dezoito anos de idade, empregou-se no comércio e passou a ser o esteio da casa; o segundo, abraçou a profissão de alfaiate mas, a boemia o levava a esquecer de que deveria auxiliar sua mãe já um tanto velha e cansada; a primeira filha, braço direito nos trabalhos domésticos, casara-se, enquanto os quatro menores estudavam, vendiam bolos, doces, etc... Houve, enfim, no mar encapelado em que velejava o barco de Elisa, calmaria suficiente para que sua vida se recompusesse, rumo a dias mais tranqüilos e felizes.
Porém, as mãos emplacáveis do destino caíram-lhe, mais uma vez, pesadamente, sobre a cabeça, roubando-lhe o filho mais velho, vitimado pela mesma doença do pai – tuberculose.
Um ano mais tarde morria o segundo; o terceiro partiu para uma zona garimpeira e nem notícias dava à sua mãe; o quarto, morreu logo a seguir e, mais tarde a caçula, que lhe deixou três netos aos quais o pai abandonara.
Agora, quase só, doente e velha, zeladora de uma escola pública, com três netos para criar, só lhe restava trabalhar até o dia em que suas energias a abandonassem de vez. Então, viria o caos, o fim de tudo...
E os dias foram passando, uma a um, na sua marcha que tem a duração da eternidade...
Certa manhã, porém, o sol não veio encontrá-la, como de costume, entregue à sua luta quotidiana. Estava tombada sobre o leito, imóvel, querendo, com seus lindos olhos azuis, dizer algo que a mudez lhe matara na garganta...
Vitimou-a um derrame cerebral que a paralisou completamente. Sofreu agonia lenta e consciente durante quase dois meses.
Dos seus nove filhos, apenas dois a assistiam nos derradeiros momentos. Quatro haviam morrido e três se encontravam ausentes.
Tinha que ser assim... Era o seu destino a escrever as derradeiras letras do último capítulo de sua atribulada existência...
Assim, morreu Elisa, sentindo, talvez, no derradeiro instante, as mãos de Pedro a deslizarem, suaves, sobre seu rosto transfigurado e cheios de vincos, ou a acariciar-lhe os cabelos finos e compridos e, agora, branquinhos como a neve ou como o algodão que juntos colhiam, lá no sítio.
Janeiro de 1958.
Elisa, mocinha ainda, trazendo n’alma um desespero imenso e na face as lágrimas branquinhas a brotarem de seus lindos olhos azuis, passava suas mãos pequenas e acariciantes no rosto pálido e frio de sua mãe, estendida, ereta, sobre a mesa.
Morreram, ali, muitas de suas esperanças mais lindas... Secava a fonte maravilhosa e quente dos carinhos maternais, para nascer, em seu lugar, o espectro da orfandade.
Elisa e seus irmãos não encontravam no pai, compreensão, ternura ou palavras amigas, capazes de atenuar a vastidão dos seus sofrimentos e amarguras, da solidão e do abandono a que foram relegados por sua madastra.
Seus irmãos, à proporção que atingiam a maioridade e até mesmo antes dela, iam deixando a casa, atirando-se à luta pela vida. Suas três irmãs casaram-se. Elisa, todavia, não tivera igual sorte. E agora, que estava só, sem a companhia e carinhos de suas irmãs, tudo ser-lhe-ia mais difícil, de vez que lhe era negado até mesmo as diversões e os bailes – sonhos azuis de toda a mocidade - . A ela se reservavam, apenas, trabalhos, perseguições e desigualdade de tratamento, como se fosse ela uma intrusa, uma renegada...
Elisa já não suportava a carga de tantos sofrimentos, amarguras e incompreesões... Foi quando seu pai, já reformado no posto de major do Exército, resolveu morar numa fazenda de sua propriedade a um uns trinta quilômetros da cidade.
Ali, respirou Elisa, amplamente, o ar puro e gostoso dos campos!... Pela manhã corria para o terreiro a ver o sol radiante, rasgar o horizonte azul, além do qual imaginava outro mundo feliz, sem ódios nem rancores, no qual imperassem, apenas, o amor, a compreensão, a solidariedade... Lá onde deveria estar sua mãe, tão carinhosa e tão boa...
Elisa era menos infeliz agora. Em meio aos elementos, no seio virgem da natureza, aprendeu a amar a solidão, os ermos... Deixava-se, gostosamente, envolver pelo vento morno e acariciante, que lhe esguedelhavam os cabelos finos, loiros e compridos.
H avia ali, um rio, pássaros canoros e as mais lindas noites de lua cheia... Até as perseguições que lhe movia a madastra pareciam arrefecidas. Esse estado d’alma, todavia, durou pouco...
Houve uma festa na vila. A ela compareceu Elisa, em companhia de seus familiares. Estava radiante... Era aquela uma das raras oportunidades que tivera para se divertir um pouco, ver algo diferente, conversar e trocar idéias com alguém...Contudo, no auge de suas vibrações emotivas deixava transparecer de seus gestos, de seu olhar e de seus sorrisos um fundo de amargura e sofrimentos... Era triste até em suas alegrias...
Elisa sentou-se em um banco, a fim de refazer-se do cansaço. Seu olhar penetrante, passeava pelo salão, quando avistou, de pé, em uma das portas, um moço pálido e esbelto, olhar sereno e tranqüilo a fitá-la, embevecido!... Os olhares de ambos se cruzaram. Elisa sentiu um estremecimento estranho, indiscritível... Algo de importante acontecia em sua vida, naquele exato momento!... Seria o amor?!...
Pedro, - assim se chamava o rapaz -, não dançava. Simples e deveras introvertido, viu naquele amor, nascido à primeira vista, um daqueles amores impossíveis, irrealizáveis... A filha do major seria a estrela pequenina e pura, inacessível, a fulgurar lá nas alturas e ele, o pirilampo a ziguezaguear na mata escura, ou, o pigmeu a olhar, eternamente, para cima, na esperança de a estrela solitária e triste, vencer as forças que a sustém no espaço, para descer ao pirilampo, ao pigmeu na terra e dar-lhe um pouco de luz e de calor...
Enquanto esses pensamentos tomavam de assalto o espírito de Pedro, Elisa pensava como deveria ser difícil vencer as forças que se interporiam entre ela e Pedro, no sentido de não se permitir a concretização daquilo que, para sua família, seria um escândalo e uma humilhação...
Contudo, o amor que é divino, que paira muito acima dos preconceitos e misérias humanas, os uniu, para sempre, a partir daquele instante...
No dia seguinte o fato já era de pleno conhecimento da família. A notícia correu celeremente, pela redondeza e o sofrimento de Elisa aumentou... Ela, porém, não desistiu. Lutou, leoninamente, pelo seu amor e venceu, casando-se com Pedro. Seus sonhos eram, agora, realidade palpitante e feliz. Encontrou, afinal, alguém que a queria e amava, apaixonadamente...
Pedro sentia-se, também, o homem mais feliz do mundo.
Era caboclo sim; humilde e pobre caboclo, com alguns alqueires de terra, um gadinho e, agora, um rancho que ele mesmo construiu, com carinho e amor, para morar com Elisa, dona de seu coração, senhora de seu destino...
É bem verdade que Elisa sentira aquela mutação inesperada e, até certo ponto, imprevisível...
Distante estava a casa grande, onde desfrutava de relativo conforto, mas, onde suportara, também, sofrimentos inenarráveis...
Pela primeira vez sentia-se dona de alguma cousa, amada por alguém, desde o dia trágico da morte de sua mãe.
Era com devoção de uma beata que ela, todas as noites, ajoelhava-se diante da imagem de Nossa Senhora, rezava o seu terço para agradecer a Ela pelo pequeno e adorável mundo que lhe ofertara, dentro desse outro mundo amargo e decepcionante. Ali vivia Elisa – rainha de um mundo novo e pequenino -, ao lado de seu rei, a quem amava com todas as veras de seu coração, com toda a intensidade de sua alma sensível e pura... Seu reinado não ia além daquele rancho de chão batido, coberto de sapé; algumas cabeças de gado e outras pequenas criações, dentro de algumas dezenas de alqueires de terra, onde se divisavam, também, os verdes arrozais, o milharal viçoso, o mandiocal em cujas sombras cresciam as melancias de polpas vermelhas e saborosas.
Assim, o tempo foi passando, sem que Elisa se apercebesse de sua marcha inexorável, tal o embevecimento em que vivia ao lado de Pedro e das poucas cousas que possuíam, mas que valiam para ela, mais que todas as riquezas da terra juntas.
Os anos foram passando, um a um, e o lar de Elisa e Pedro se enriquecia com o nascimento dos filhos. As lutas aumentavam e as responsabilidades cresciam... De outro lado, porém, o trabalho honesto e construtivo, de mãos dadas com a terra generosa e boa, criavam perspectivas novas e cada vez mais promissoras.
Os filhos cresciam e já os mais velhos estudavam na vila, enquanto Elisa e Pedro planejavam vender o sítio e mudar-se para a cidade, onde poderiam educá-los e prepará-los para uma luta diferente...
Mas, naquela manhã de um lindo dia de setembro, Pedro saiu a trabalhar o gado no campo. Já ia alto o sol e ele não tornava, como de costume, para o almoço. Todavia, lá pelas duas horas da tarde chegava Pedro, pálido e ofegante.
Procurando tranqüilizar Elisa, dissera-lhe que não se preocupasse com ele, pois havia sofrido, apenas, uma pequena “rodada” (queda de cavalo em corrida) e logo estaria bem, bastando, para tanto, alguns banhos em água canforada e chás de arnica.
Os dias, porém, foram passando sem que Pedro pudesse voltar ao trabalho. Um dia sentiu-se tomado de uma inquietude estranha e de uma febre que o levava ao delírio. Teve um acesso de tosse e de seus lábios, brancos como cera, escaparam duas golfadas de sangue...
Elisa estrangulou na garganta um grito de dor e desespero... Correu à vila a procura do médico e quando este chegou, examinou Pedro e a chamou de lado, percebeu que naquele exato momento teria a confirmação de suas suspeitas: Pedro estava tuberculoso, vitimado pela chamada “peste branca” até então, incurável. Era um condenado e deveria morrer ali mesmo, cercado dos cuidados e carinhos de sua esposa e filhos... Morrer devagarinho, numa agonia muito lenta... Agonia sem perdas de sentido... Agonia de quem assiste ao seu próprio fim e, no derradeiro instante vê o desespero e o pranto estampados no rosto de seus entes queridos, ouvindo-lhes as últimas e angustiantes palavras, sentindo esvair-se-lhe a vida sem poder, contudo, agarrar-se a ela.
Assim morreu Pedro, levando consigo os sonhos dourados de Elisa, suas esperanças, seus dias melhores, mais alegres e inesquecíveis...
Restavam a Elisa os filhos queridos e neles encontraria a razão única de seu viver...
Vendeu o sítio e mudou-se para a cidade, juntamente com seus nove filhos. Comprou uma casa e atirou-se ao trabalho duro e constante, no que era coadjuvada pelos filhos mais velhos. Os primeiros anos, como soe acontecer em circunstâncias tais, foram os mais difíceis... Depois, o filho mais velho, já com dezoito anos de idade, empregou-se no comércio e passou a ser o esteio da casa; o segundo, abraçou a profissão de alfaiate mas, a boemia o levava a esquecer de que deveria auxiliar sua mãe já um tanto velha e cansada; a primeira filha, braço direito nos trabalhos domésticos, casara-se, enquanto os quatro menores estudavam, vendiam bolos, doces, etc... Houve, enfim, no mar encapelado em que velejava o barco de Elisa, calmaria suficiente para que sua vida se recompusesse, rumo a dias mais tranqüilos e felizes.
Porém, as mãos emplacáveis do destino caíram-lhe, mais uma vez, pesadamente, sobre a cabeça, roubando-lhe o filho mais velho, vitimado pela mesma doença do pai – tuberculose.
Um ano mais tarde morria o segundo; o terceiro partiu para uma zona garimpeira e nem notícias dava à sua mãe; o quarto, morreu logo a seguir e, mais tarde a caçula, que lhe deixou três netos aos quais o pai abandonara.
Agora, quase só, doente e velha, zeladora de uma escola pública, com três netos para criar, só lhe restava trabalhar até o dia em que suas energias a abandonassem de vez. Então, viria o caos, o fim de tudo...
E os dias foram passando, uma a um, na sua marcha que tem a duração da eternidade...
Certa manhã, porém, o sol não veio encontrá-la, como de costume, entregue à sua luta quotidiana. Estava tombada sobre o leito, imóvel, querendo, com seus lindos olhos azuis, dizer algo que a mudez lhe matara na garganta...
Vitimou-a um derrame cerebral que a paralisou completamente. Sofreu agonia lenta e consciente durante quase dois meses.
Dos seus nove filhos, apenas dois a assistiam nos derradeiros momentos. Quatro haviam morrido e três se encontravam ausentes.
Tinha que ser assim... Era o seu destino a escrever as derradeiras letras do último capítulo de sua atribulada existência...
Assim, morreu Elisa, sentindo, talvez, no derradeiro instante, as mãos de Pedro a deslizarem, suaves, sobre seu rosto transfigurado e cheios de vincos, ou a acariciar-lhe os cabelos finos e compridos e, agora, branquinhos como a neve ou como o algodão que juntos colhiam, lá no sítio.
Janeiro de 1958.