[Falsa Paisagem]
Bate seco o martelo do sapateiro
na velha sapataria de portas cerradas.
soa sem cor, sem alma, a sirene
do curtume fechado à beira da estrada.
O trem apita longamente na Estação
dos farrapos da minha memória.
Sopra o vento de agosto a dobrar os eucaliptos
que antes sombreavam a Ladeira da Saudade.
Espalham-se os cacos do globo do poste
que eu quebrei na praça que não há mais.
Soa alto o burburinho dos feirantes
no extinto Largo das feiras de domingo.
Urubus pousados na cumeeira do açougue
espiam-me, atentos, apontar o estilingue.
Violões em apaixonada serenata
plangem sob a janela da casa em ruínas.
Correm as águas turvas das enxurradas
pelas trilhas agora cobertas de asfalto.
Viajo por estas paisagens da memória
enquanto sonho as ruas onde caminho...
Impossível distinguir as partes falsas
daquelas que realmente aconteceram,
tudo que me resta, tudo que habita minha mente,
está para sempre distorcido pelo tempo:
sou testemunha da minha pequenez!
Viver foi uma sangria de esperanças,
foi uma experiência cabalmente inútil,
a existência não passou de recortes; sim,
recortes de instantes escapados, fanados —
e foram cinquenta anos a aprender isto!
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[Penas do Desterro, 25 de janeiro de 2009]