MÚLTIPLOS SABERES E ESTUPIDEZ HUMANA: um florilégio de aforismos, citações, bordões...
MÚLTIPLOS SABERES E ESTUPIDEZ HUMANA
A ENCICLOPÉDIA DE MÚLTIPLOS SABERES
A “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (1817), além de apresentar a unidade do sistema filosófico hegeliano, procura, nas palavras do estudioso francês François Châtelet, esboçar “o quadro geral das aplicações do Saber (da filosofia tornada ciência) às múltiplas actividades humanas”, objetivando que tudo fique BEM CLARO!!
Para cumprir tal ideal de clareza, de transparência, o discurso filosófico moderno não deve, portanto, assumir metáforas! Brada o século dixhuitième, o século do Iluminismo, o século da Enciclopédia.
... EIS, AQUI, NOVAMENTE, O REVIDE, O “REVIVAL”, A ANTIGA BRIGA ENTRE FILOSOFIA E POÉTICA... Acompanhemos, caros leitores:
O ENCICLOPEDISMO FLAUBERTIANO: A EPOPÉIA DA ESTUPIDEZ HUMANA
Velejando com a imaginação criadora de Marcel Proust, mergulhamos numa ordem temporal de eventos que se nivelam em retrospecto, e então refletimos junto a Proust:
“Assim como acontece com o futuro, não é de uma só vez, mas de grão em grão que se experimenta o passado.” (Proust 1985)
“Esteira rolante”: eis a metáfora empregada por Proust (1), caracterizando, por meio dessa bela expressão metafórica, a narrativa realista flaubertiana. Assinala, ainda, Marcel Proust:
“Só agora li (...) o artigo do distinto crítico de ‘La Nouvelle Revue Française’ sobre ‘o Estilo de Flaubert’. Fiquei estupefato, confesso, de se considerar sem muito talento para a escrita um homem que, pelo uso inteiramente novo e pessoal que fez do passado definido, do passado indefinido, do particípio presente, de certos pronomes e certas preposições, renovou a visão que temos das coisas quase tanto quanto Kant, com suas Categorias, teorias do conhecimento e da realidade exterior.” (Proust 1994, p. 65)
Gustave Flaubert - “... uma maneira de cortar, de romper o discurso ‘sem o tornar insensato’ ”, assinala Roland Barthes (1974). Uma revolução na linguagem. Contra a liberdade da linguagem, a retórica (desde Aristóteles) edificara um sistema de vigilância. Todavia, esse segundo código estava agonizando em meados do séculos XIX, porque “a retórica se afasta, desnudando, de certa forma, a unidade linguística fundamental, a frase. Este novo objeto, no qual a liberdade do escritor passa a aplicar-se sem mediações é descoberto com angústia por Flaubert ”, insisti Barthes (2).
Gustave Flaubert – “... ‘idealista trovejante’ como nos faz notar Edmund Wilson (1991), pois a “idéia” que surge nos escritos de Flaubert nada mais é do que a “Idéia” no sentido hegeliano, sob o disfarce da arte.
Bordão flaubertiano - “Pintar bem o medíocre (...) nesse tempo de avacalhamento universal ” - exploração estética e figuração do real: a herança flaubertiana descreve detalhadamente tal polaridade, bem como antevê outros conflitos que estavam em jogo no campo literário durante o século XIX, sobretudo aqueles que opunham as esferas da arte e da economia. E a efervescência histórica do tempo flaubertiano concorria para aprofundar o abismo entre as duas referidas esferas. Como bem salientou o brilhante escritor e crítico literário Edmund Wilson (1991), a guerra de 1870 foi um choque terrível para Gustave Flaubert:
“Minha opinião [escreveu Flaubert a George Sand] é que toda a Comuna devia ter sido condenada às galés, todos esses sanguinários idiotas deveriam ter sido obrigados a limpar Paris das ruínas, com argola e corrente no pescoço como condenados. Mas isso teria sido uma ofensa à ‘ humanidade’. Tratam com brandura o cão danado, mas não as pessoas que foram mordidas...” (Apud Edmund Wilson 1991, p.275)
Mais tarde, em 1875, repudiando os valores religiosos e socialistas que agitavam e proliferavam na época, numa de suas cartas dirigida ao amigo Ernest Feydeau, Flaubert deixou registrado o seguinte:
“Nunca, meu velho e bom camarada senti tamanho nojo da humanidade. Gostaria de afogar a raça humana no meu vômito.” (Apud Edmund Wilson 1991, p.277)
Deplorando cada vez mais a estupidez humana, Gustave Flaubert escreve uma carta a Louise Colet, iniciando-a nos seguintes termos:
“Você já percebeu que me estou tornando moralista? Será um sinal de velhice? Volto-me, certamente, para a alta comédia, pois sinto por vezes atrozes pruridos de descompor os seres humanos, e fá-lo-ei um dia, daqui a dez anos, num largo romance de larga enquadração [isto é, o inesquecível e inacabado “Bouvard e Pécuchet”]. Enquanto aguardo esse dia, acode-me uma velha idéia, a do meu ‘Dicionário de idéias feitas’ (Sabe o que é?).” (Flaubert 1981, p.29)
“Será a glorificação da história”, proclama Flaubert. Selecionemos e confiramos, então, bem próximos, alguns verbetes flaubertianos. No registro abaixo, os autênticos “cuspidores de bilis”:
“... Descartes - ‘Cogito, ergo sum.’
Diploma - Distintivo da ciência - Não prova nada.
Doutrinadores - Desprezá-los. Por quê? Não se sabe.
Economia Política - Ciência sem entranhas.
Enciclopédia - Ironizá-la como obra de rococó, ou mesmo combatê-la.
Época (Atual) - Revoltar-se contra ela. - Deplorar que não seja poética. - Chamá-la de época de transição, de decadência.
Fábrica - Vizinhança perigosa.
Geração espontânea - Idéias de socialista.
Hugo (Victor) - Errou muitíssimo em meter-se na política.
Homero - Nunca existiu. - Célebre pela sua maneira de rir: um riso homérico.
Mito - ...
Multidão - Tem sempre bons instintos...” (3)
Tempos depois, num registro filosófico:
“A multidão - nenhum tema se impôs com maior autoridade aos literatos do século XIX.” (Benjamin 1989).
Tempos dantes e depost, outra série de “cuspidelas biliosas”:
.Ver a estupidez humana e não mais tolerá-la (Flaubert).
. 1848: inovação trazida pela revolução: aprender a política da multidão, das massas. “Em princípio, os vislumbres políticos de Baudelaire não excedem os desses conspiradores profissionais. (...) Na pior hipótese, poderia ter feito suas as palavras de Flaubert: ‘De toda a política só entendo uma coisa: a revolta’”. (Benjamin 1989)
. 1856: suicídio de Emma Bovary. Emma Bovary: “C’est la realité”. “ Emma Bovary c’est moi ”, responde Flaubert.
. “A Internacional vai sucumbir, pois está no caminho errado. Nenhuma idéia, nenhuma, só inveja!” (Flaubert)
. 1857: “... o novo romancista encontrava-se diante de uma sociedade absolutamente desgastada - mais do que desgastada, embrutecida e ávida, só tendo horror à ficção e amor à posse . (...) Qual o meio mais seguro de comover todas essas velhas almas? (...) Sejamos (...) vulgar na escolha do tema, visto que a escolha de um tema demasiado grande é uma impertinência para o leitor do século XIX.” (Baudelaire 1992, p.48 )
Bovarismo e o Paraíso da Estupidez Humana. Oh, insensata e escandalosa paráfrase! Ei-la:
“Um espectro paira sobre a Europa - o homem das multidões.”
Confissões de um filósofo:
_ “Perguntar-me-ão como sei tudo. ‘Eh bien, j’ai lu Flaubert’ ” - afirma, por fim, o notável conciliador filósofo-literato Jean Paul Sartre.
CÂMARA NA MÃO E UMA IDÉIA NA CABEÇA
“O Cinema Pensa: uma introdução à filosofia através do cinema”, por Julio CABRERA. Editora Rocco (lançamento nos próximos dias!).
Cabrera é entrevistado, com respeito ao referido livro, por Ubiratan Brasil in “Caderno 2 – CULTURA” de “O Estado de São Paulo”, de 16 de abril de 2006, p.1:
Ubiratan Brasil: “_ Por que a filosofia não deveria pressupor-se como algo perfeitamente definido antes do cinema?”
Julio Cabrera: “_ Como respondi já ao weblog.educ.ar, a filosofia, como eu a concebo, não está amarrada a uma única tradição, como pensa a ‘filosofia profissional’ das academias. Se filosofar é pensar/sentir a condição humana e seus desdobramentos cognitivos, éticos etc., isto não é, certamente, um privilégio de Platão, Descartes ou Heidegger. Escritores, artistas plásticos e cineastas têm muito a dizer sobre a condição humana (...) O que interessa em filosofia é aprender a VER, e isto quer dizer, no caso de filmes, a degustar, apreciar, mergulhar neles, entregar-se...”
NOTAS
1. Proust, Marcel. “Nas trilhas da crítica”. São Paulo: Editora Imaginário, 1994, p.67.
2. Cf. Barthes, Roland. “Flaubert e a frase”. In: “Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura”. São Paulo: Cultrix, 1974.
3. Flaubert, Gustave. “Dicionário das idéias feitas”. In: “Bouvard e Pécuchet”. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (além do elenco de textos in NOTAS – vide acima)
BAUDELAIRE, Charles. “Reflexões sobre meus contemporâneos.” São Paulo: Imaginário, 1992.
BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In ‘Obras Escolhidas’, v.3, Brasiliense: São Paulo, 1989.
CHÂTELET, François (Org.). “A Filosofia de Kant a Husserl”. Lisboa: Dom Quixote, [s.d.].
PROUST, Marcel. “No Caminho de Swan”. 17 ed. São Paulo: Globo, 1985.
WILSON, Edmund. “Onze Ensaios: literatura, política, história”. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Outono de 2006