(SEM TÍTULO II)

A minha memória é fotográfica. Ela ficou mais apurada pelos estudos de pintura que realizei na juventude. Boa memória é qualidade desejável, no entanto, com o passar dos anos, pode nos provocar incômodos.

É comum hoje "reconhecer" na rua pessoas que devo ter visto antes num lugar indefinido. De fato, sei que "conheço" a pessoa, mas sem conseguir situá-la no seu ambiente a sensação é estranha, quase onírica. Conheci onde? Quando?

O "arquivo" mental guarda tais imagens intactas, sem situações adjacentes que ajudem a incorporá-las à memória rotineira, cotidiana.

Conversei com muitas destas pessoas. Guardo delas inclusive a lembrança da voz, o timbre, ritmo, volume. Se conseguisse trazer à tona o assunto conversado certamente completaria o reconhecimento.

Já aconteceu: esta pessoa que me parece a lembrança de outra, acaba se revelando lembrança de si mesma. O que tomava por referência ou reprodução era o próprio original.

A esta altura da vida, cada indivíduo é réplica de outro com quem tratei em algum tempo e lugar. Vivo num mundo de simulacros. Serei eu, também, o duplo de alguém que não conheço?