Mendades ou Vertiragens

Preâmbulo:

Quanto ao ato de existir-me estou perfazendo o fato. Então como para não morrer de inanição e entre o ato de fazer-se portador de distancias e o fato de estar redigindo minha própria existência, escrevo crispações para depois existir. É com um traço seco que me traço em um esboço rude, desses que mesmo guardado por muito tempo não será poupado a um destino de lixo.

Estética:

Sempre quis ter uma boca bem vermelha e

volumosa, mas é tão triste ter tantos espasmos e nenhum dom. Como conseguir a posse dos segredos pelas palavras mais gordas? Até o momento só me vêm uns filetes de magoas que insistem em escorrer por entre um par de lábios descorados.

Eis que fui feita por genitores áridos e ainda, em meus pesadelos, preservam os dedos em riste. E acredite-me, em um mundo de broncos é melhor ser pivete de que circular por aí vestida de fêmea.

Projeto:

Às vezes quero ser um destes seres alados que flutuam em meu sofrido mundo. Um pássaro, borboleta ou libélula, aflorando flores e conspirando por

um destino de rosa, entre os espinhos de um amor indolente. Em outros momentos queria ser a estrela que vive de me representar dramaticamente ou seria aconselhável, trágica!

Contudo só importa que faço tudo pela silhueta de um astro adelgaçado. E assim distancio-me da idéia de ter calos nas mãos e a alma ressecada. Eis que pretendo passar impune com esta autobiografia, plagiando a memória ardente dos exilados.

Exigência com justificativa:

Não me espreite esta dor, pois que sou egoísta no

doer cultivado. Justifico os dissabores com palavras plenas de sutilezas e se persistir a dúvida, apresento meu cartão de “cidadão livre de engano”.

É um des-caráter, mas fazer o quê se não pude ser Clarissa. Entrementes tenho uns afastamentos com ferocidade e como Clarice vou diluindo-me. São as travessias de um silêncio magoado, herança de meus avós, mal vindos de quatro pontos sem data.

Vida social:

Amigos de infância só tive os lívidos e ficaram

na infância. Companheiros para o adolescer adolesceram

por estradas de traçado tortuoso. E agora que estou pensando em ser adulta, encontro-me entre os gatos recolhidos com a fome das sarjetas e uns livros empoeirados. O tesouro, fui acumulando no esforço de desestimular o gosto pelo cultivo da preguiça nos músculos. Mas como sou distraída, acabei caindo de um susto a outro pelas bordas da borda da perplexidade e agora resido o tédio de um diorama.

Veja bem, não é que tenha encontrado muita gente árida neste museu de assombros. O mundo é de papel e eu me distraio arquitetando o meu, acalentada por afetos de quatro patas.

Às vezes palmilho entre o exaspero e a mágoa, as ruas sentidas desta cidade, com gosto pré-agônico de desastre entre os lábios.

Toda a vida, aqui onde vivo há um jardim para cultivar estranhos. Veja-me o vizinho de trinta anos, segue firme na disposição de não dizer: - “Bom dia”.

Sobre o Amor:

Oficial, profano e rebento. Aqueço a

lâmina sobre a pele aflita, pois que todo homem no extremo

da paixão é um deus para ser sacrificado ao capricho de

outro deus.

Do primeiro amor, não veria meus estragos nem que os desatinos fossem um colar de escândalos. O segundo é segredo, todavia ofereço pistas líricas aos curiosos, mas ninho de amor clandestina neblina entre flor e muro. E o último me veio um anjo pálido. Reina com asas para o antes das vidraças e muito me ama com amar de menino nascido de mãe solteira.

Animal de estimação:

O segundo gato que eu quis ter era cinza e não me deu trela, enquanto um felino em amarelo guinchava, pedindo consolo por tanta grade. Adotei-o e foi uma dessas providências para quem não crê em seres feitos

para desinventar o humano e fazer da fera criatura com gosto por almofadas e sono. Também houve um filhote em cor de pesadelo, mas quando olhei bem de pertinho vi-o, manchado com minha própria sombra e acolhemo-nos. A cadelinha Pelúcia ainda deve estar esperando-me a beira de uma infância abreviada...

Do gosto literário:

Por uma fábula vivo e morro. Agora sei que as vozes que me acordam para escutar a voz da longa noite longa dos tempos de “Era uma vez...”,também são minhas.

Mas há os dias em que a poesia amanhece morta e outros em que se apresenta como uma erupção insustentável, onde o poema não me sabe, tanto é o desatino em um jeito confuso de sentir. Derramam-se versos, lava por entre dedos no papel. A página minha pele libidinosamente áspera. Brota-me lauto pelos e poros de um saber que não sei. Só me falta a ordenação desses delírios para tão densa obra. Não seria magnífico, meus poemas, escrita de sangue, vulcanizado em um tomo sóbrio?

Outra vez vida social ou posfácio:

Sou tão sociável quanto os

bichos que nasceram sobre uns restos de verde a beira das

estradas. Tão adaptada ao meio quanto a ave pega em vôo e

que recebeu como prêmio à sua beleza, uma gaiola ornada com flores de plástico e perfume de polietileno. Mas se para uma campina me levarem, talvez ainda seja possível resgatar a imagem: uma criança magoada se desfazendo em lágrimas, por toda a vida a menina chora sendo assistida por uma corja de beija-flores.