Uma grande lição


          Longe, estava eu de imaginar que naquele domingo, tão comum e igual a tantos outros, viesse a receber da natureza tão proveitoso ensinamento.
          O dia ia alto... O céu, imensamente azul e sereno, deixava-se penetrar, gostosamente, pelos raios oblíquos de um sol de primavera, cheio de luz, de vida e de calor!
          Não se via na imensidão do céu uma rusga, uma torrezinha de nimbus que lá pela linha do horizonte, pudesse prenunciar chuva ou viração.
          O dia estava magnífico e urgia aproveitá-lo.
          Procurei por todos os companheiros e nenhum deles podia fazer-me companhia naquele domingo. 
          Voltei para casa, desesperado. Não! Não me era possível desperdiçar um dia excepcional como aquele! Mas... ir com quem? Sozinho?! Não. As pescarias naquele riacho de águas cristalinas somente eram possíveis com sucesso à noite e não me autorizava o bom senso demandar aquela distância de vinte quilômetros até o “Itá” e nele permanecer, sozinho, até altas horas da noite, sem ter com quem falar nem com quem dividir minhas emoções.
          Mas, dentro de mim, falando mais alto que o bom senso e a razão, estava esse entusiasmo, esse verdadeiro fascínio que empurra o esportista às grandes aventuras, em busca, tão somente, de uma emoção a mais.
          Foi assim que naquele domingo, lá pelas duas horas da tarde, simulando partir em companhia de um amigo, para não inspirar cuidados à minha esposa, montei minha bicicleta rumo àquele bonito e inesquecível “Itá”...
          Qual não foi minha alegria, meu indizível contentamento, quando senti soprar de encontro a mim aquela brisa fresca e cheirosa que se desprende das matas ribeirinhas!
          Sim. Ali estava, a alguns metros apenas, aquele bonito riacho que simbolizava para mim um reservatório de emoções alegres e inolvidáveis!
Ia ainda alto o sol e meu relógio de bolso, o mesmo que ainda hoje me acompanha, marcava quatro horas da tarde. 
          Tomei, a seguir, as primeiras providências, localizando meu veículo na orla da mata, em lugar seguro, onde deveria permanecer até a hora do regresso.
          Preparei, cuidadosamente, os caniços e as linhas; coloquei o bornal a tira colo e, em um dos bolsos da camisa de couro, bem a jeito, a indispensável latinha de minhocas, com as quais pescaria lambaris, para com estes, ao cair da noite, pescar peixes maiores. 
          Assim, sedento de emoções, só compreendidas e avaliadas por aqueles que, como eu se atiram de corpo e alma a esse maravilhoso esporte fui descendo marginalmente o rio, em busca de um e outro remanso, tão raros naquelas águas serranas...
          Beijava, ainda, o sol as copas das árvores mais altas e as primeiras sombras da noite se faziam sentir na densa mata quando, farto de iscas, dei início à pescaria propriamente dita.
          Logo após à primeira anzolada senti um beliscar na isca! Depois outro mais forte! Um terceiro mais forte ainda! 
          Fez-se um silêncio profundo, apenas entrecortado pelo bater descompassado do meu coração, que parecia querer me vir à boca, enquanto o corpo enrijecido, a respiração ofegante e o braço retesado, no prolongamento horizontal do caniço, aguardava, no auge da emoção, o momento propício de fisgar o peixe.
          Foram segundos que pareceram séculos! Séculos de expectativas e emoções até que a vítima, em corrida desabalada e voraz, teve morte certa, para gáudio de seu algoz.
          Era um bonito douradilho! Vieram, a seguir, uma piaba, outro douradilho, uma tubarana e, não tardaria o instante em que os bagres viriam juntar-se àqueles preciosos pescados. 
          Ao dia claro e imensamente belo, sucederam as trevas da noite que, pesadamente, caíram sobre aqueles ermos, entre o coaxar dos sapos, o piar dos pássaros noturnos, o movimentar de répteis e pequenos insetos que buscam repasto na solidão da noite! Ouvia-se o murmurar das águas cachoeirentas, que se agiganta com o silêncio da noite ou que nos faz sentir o quanto somos pequenos e covardes ante à grandiosidade da natureza!...
           As sombras eram fantasmas esguios que se debruçavam sobre meu corpo aniquilado e vencido pelo medo! 
          O bulir de uma folha seca no chão, assumia em meus pensamentos proporções alarmantes e aterradoras! O marulhar das águas eram vozes que se erguiam na quietude da noite, ora em gritos desesperadores e alucinantes, ora em súplicas e comoventes lamentos, que infundiam em mim espantoso e indiscritível pavor!...
          Não tive forças bastante para participar, por mais alguns minutos, sequer, daquele quadro deveras grandioso e no qual não passava eu de um mero ponto perdido na tela imensa que mãos invisíveis, magistralmente, pintavam!...
          Vencido em minhas emoções alegres; dobrado em minha pequenez humana deixei aquele deserto quase em corrida desesperada!
          Qual não foi minha tranqüilidade de espírito ao penetrar na cidade, ao transpor o limiar de minha casa e sentir nela o calor e o conforto do lar! Ali, ao invés de trevas, havia luz, havia segurança e alegria ao invés de perigo, solidão e tristeza.
           Eu deveria estar transfigurado ante a mutação feliz e um tanto violenta daquele quadro, agora inspirado em motivo novo, em cujo cenário se fazia sentir, em sua plenitude, não a grandeza dos elementos naturais, mas, aquela nascida da inteligência do homem que dominou e venceu, parcialmente, a natureza, a ponto de subestimar-lhe o poderio.
           Sim, eu subestimei esse poderio e essa grandeza e quis senti-los de perto num desafio ousado e insensato.
           Mas, logo aos primeiros embates caí de joelhos, vencido em meu orgulho, em minha microscópica grandeza!


                                                   Janeiro de 1961.

Antonio Lycério Pompeo de Barros
Enviado por Antonio Lycério Pompeo de Barros em 23/12/2008
Reeditado em 07/04/2009
Código do texto: T1349444
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