Leões do Sul

Fui abrindo o olhar, e conforme o espanto se fazia, o armagedom se mostrava na penumbra do céu cor de chumbo. Casas rachadas despencando em pedaços, ruas feitas riachos, carros destruídos arrastados como se fossem de brinquedo; pedaços de animais, pedaços de gente, coisas destroçadas e o cheiro de devastação e morte. Uns homens guerreiros, chorosos, de mãos atadas à cintura como a se perguntarem o que fazer? Ilhota inteira debaixo de águas vermelhas, barrentas, revoltas e vorazes decididas a derreterem e carregarem as serras cobertas por cerrada mata estonteantemente verde. Por onde alcançava o olhar,destruição e morte eram o que se via.

Novembro, o novembro mais escuro e denso de toda a vida catarinense. Jamais se vira tanta água diluindo o mundo e a vida sobre a terra: casas ricas, casas pobres – tudo debaixo de fartas águas sujas. Aqui, ali e acolá, uma cumeeira, um sobrado, um poste orientavam os barcos dos bombeiros a farejavam sobreviventes através de clarões que rasgavam as nuvens carregadas. Tanto era a água que se tornava difícil acreditar ter caído do céu. Ter-se-ia que vê-la caindo, bátega por bátega, para crer! Quem chegava ali de pára-quedas, como eu, achava mais fácil acreditar que o mar perdera o rumo e se espalhara mundo a fora!

Feito fossem de papel, canoas serpenteavam mansamente o aquário gigante; sobre o qual, Ilhota. O centro comercial invadido, dominado pelas serras em estado líquido, como se a natureza estivesse em doida transformação: terra que virava lama, que em outro estágio, bem mais adiante, transmutar-se-ia novamente em terra, em terra fértil, em vida, em campos, flores, pastos e boiadas. A mãe natureza endoidecera, perdera completamente o tino e devastava homens, animais e construções; voraz e furiosa, decidida a transformar tudo em outra coisa, outra coisa bem diferente da forma de vida que aquele pedaço de Brasil sempre conhecera.

Homens a guiarem cavalos nadadores em busca daquilo que já se tornara entulho. Uns queriam resgatar aos filhos, outros aos animais de estimação e um terceiro procurava a mãe que descera junto com os escombros da casa rica onde trabalhava de doméstica. Era viso se sondar os amontoados de pedaços de tudo à investigar afogados arrastados, mortos, naquele mar de desespero e desjuízo. Os céus enlouqueceram! Só pode ser desatino brabo este juízo final! Logo mais adiante, uns bravos e heróicos homens lutavam contra a correnteza para desenganchar um boi atado ao poste por fios de cobre. Depois de horas de luta vã, o animal afogado desceu nas águas; desceu boiando, barriga estufada, parecia um balão em desastrada tentativa de vôo e vida própria.

Um muro enorme fazia vez de parede de piscina! Flutuando sob esta, um barquinho que tentava resgatar uma mulher e uma criança desesperadas! Há dias encurraladas, mostravam fortes sinas de fome e frio. A criança reclamava o resgate do cãozinho de estimação que se jogou nas águas bravias por não entender direito o que sucedia. Meu Deus! Assim que a operação foi concluída, o muro rendeu-se à força das águas e partiu em mil pedaços como se fosse de isopor. Sou avesso a rezas, mas não me contive: trinquei os olhos e fiz o sinal da cruz. Quando abri, o olhar foi parar nuns copados de árvores que ostentavam pedaços de roupas, molambos, levados pela enchente como prova de que o apocalipse se instaurara, e ali, no topo das árvores, fincava sua bandeira.

Numa rua feita mar dois bombeiros boiavam seu barquinho a salvar uma criança linda de olhos azuis, vermelhos de pânico. Não sabia da mãe, não sabia dos irmãos... Mas vira o pai cair e ser arrastado pela enxurrada na noite anterior quando fora atingido por um barranco. A serra derretia-se como se fosse sorvete no verão e consigo trazia enormes pedregulhos, pedras enormes, árvores inteiras e uma infinidade de destroços de tudo quanto era coisa. O mundo certamente estava se acabando. O pequeno infante arrancou um olhar marejado do militar robusto quando pediu a este que lhe salvasse a mãe, que não a deixasse morrer no rio de água sujo como o boi que acabava de despencar-se cachoeira a baixo!

Este lugar nem parece que um dia abrigara gente feliz. Destruição por todos os lados, um verdadeiro cemitério da organização e da civilização humana. Por entre uma parede partida via-se, mais além, destroços de automóveis, postes partidos, telhados rasgados e uma placa metade afogada, metade resistia, onde se lia parte de uma palavra – Farm – certamente farmácia. A canoa de um remador solitário – quase a chocar-se com a placa de transito e o cocuruto do orelhão que indicavam a profundidade das águas naquela área outrora comercial. Cartazes, os mais altos, exibiam mulheres seminuas a venderem moda íntima e moda praia. O olhar de fogo da sensualíssimo parecia alienado ante o cenário diluviano.

Surgiu um sintagma de homens adrede preparados para enfrentar a fúria celesial. Rostos viris, braços fortes e olhares decididos a curar todos os feridos. E lá no cume de um morro, que ainda permanecia intacto, a torre da igreja firme e forte, como se Deus desafiasse os bombeiros: “se vocês curarem os corpos, eu curo os espíritos”. Feito formigas, homens a desembarcarem alimento, água potável, roupas e esperança. Em seguida, doentes e idosos eram embarcados no helicóptero do exercito brasileiro. Aceleravam-se os motores, as hélices giravam, giravam e se embalavam; espalhavam forte corrente de ar gélido. A máquina, então, alçava vôo e se ia abrindo espaço no céu escuro. Pouco tempo depois regressa em nova missão: descarrega e carrega tudo outra vez. Somente os ânimos dos voluntários pareciam novos! Traziam materiais providenciais e nos ânimos, esperança.

O sol tímido se metia a abrir uma nuvem negra que se tornava furta-cor e se explodia em multicolores fachos de luz. Seria a primeira bela manhã do recomeço? O vale rodeado de serras imponentes de antes, agora parecia de papel: lama, pedaços de animais, pedaços de gente, galhos de árvores, casas despedaçadas – tudo no lugar dos morros que derreteram!

Uma multidão de militares a se considerar impotente diante da reconstrução do mundo todo. Um dentre eles esforçava-se sobremaneira para conter o choro: lamentava não poder agasalhar e alimentar todos as vítimas da calamidade. Um guerreiro de coração de menino e alma pura a comover e despertar a solidariedade de um país continental. Um herói de verdade que às águas barretas juntava suas lágrimas do bem como se fossem jóias sacras a exorcizarem um mar sem sereia, e uma seqüência de cachoeiras sinistras que cantavam canções fúnebres em sol e dó.!

Cenário assustador: uma civilização que morreu sobre águas barretas e serras diluídas. Mas não eram estas águas que mais metiam medo. O que realmente apavorava eram as águas que ameaçavam cair! O sol que rasgava nuvens e explodia cores, morreu antes de vingar. Cedeu o lugar às nuvens de chumbo. E impiedosamente recomeçou a versão atual dos Dias de Noé: água, água, água... Água que descia, descia...

Então quis chorar de tristeza, mas não consegui. Quando acordei ainda ouvi um trecho da canção que eu lançava aos céus catarinenses:

Vem, Leão

Não chores mais

Vem, guerreiro

Descansa o corpo lasso

Aceite meu abraço

Quando o dilúvio cessar

Das ruínas surgirá

Outro paraíso

mais seguro

De mais futuro

Vem, Leão

Venham leões do Sul

Precisai agora de abrigo

E de ombro amigo

Venham,

Regressareis com o sol...