"Há sempre um Anjo na Pedra..."
“Há sempre um Anjo na Pedra...”
Minha mãe contava uma história em forma de poesia (e não me lembro mais o autor!), que se chamava: “Há sempre um Anjo na Pedra!”... Era mais ou menos assim:
“... Era uma vez um menininho que ficou muito intrigado com um homem que carregava um grande bloco de mármore. O homem colocou o bloco em um lugar espaçoso, e trouxe uns materiais estranhos, que o menino não conhecia: parecia um martelo e alguma coisa que se assemelhava a uma faca de ponta. E o homem, calmamente, começou a bater na pedra bruta, tirando-lhe as arestas, desbastando o mármore e fazendo curvas. Afastava-se um pouco, admirava o que havia feito e... voltava para o trabalho. Assim se passaram vários dias; o garoto ia chegando mais perto, intrigado, e não entendia o que o homem fazia!
Um dia, se encheu de coragem e interrompeu os “toque-toques” no mármore; perguntou:
-- Senhor, o que o senhor está fazendo?
O homem parou o trabalho, limpou o suor da testa, tentou desempoeirar um pouco o corpo, e disse:
-- Bom dia, menino! Eu sou um escultor e este é o meu trabalho.
-- O que é um escultor?
-- É alguém que trabalha a pedra bruta e tira de dentro dela alguma coisa mais bonita do que a própria pedra.
-- Mas o que o senhor vai tirar deste bloco de pedra, que até já está ficando meio torto e sem forma?
-- Oh, menino! – disse o sorridente e paciente escultor – Eu vou tirar o Anjo que está escondido na pedra!
-- Como? Tirar um Anjo da pedra? Não acredito que tenha um Anjo aí dentro!
-- Então – disse o escultor – continua vindo me observar e verás que vou tirar o Anjo que está dentro desta pedra!
Dia após dia, o menino vinha... E o escultor trabalhava. O menino um dia trouxe-lhe água fresca, noutro dia frutas; outro dia trouxe-lhe um pedaço de pão e um jarra com vinho. O escultor agradecia e dizia:
-- Obrigado, meu amigo! Tua presença torna meu trabalho mais fácil, pois vejo o teu interesse e o quanto tentas me ajudar, amainando-me a fome e a sede, mas principalmente, o que vale mais é a tua companhia! Podes crer, estamos esculpindo juntos!
-- É, disse o menino. Eu quero ser um dia como tu, um escultor! Mas não vejo o Anjo nesta pedra que está tão disforme!...
-- Tem paciência, meu pequeno amigo! É preciso desbastar a pedra bruta, aplainar-lhe as arestas, lixar seus cantos pontudos, poli-la e, com muita paciência, tirar o Anjo da pedra!
Passaram-se os dias.
Então, à chegada do inverno, o menino adoeceu e não mais foi ver o trabalho do escultor. Este foi até a aldeia para saber o que havia acontecido com seu amiguinho. Estava de cama, com febre, triste. O escultor pediu licença à família, para todas as tardes, quando deixasse seu trabalho, vir visitar o menino. Vinha e contava-lhe histórias da grande arte da escultura e da arquitetura. Contava-lhe das Catedrais que havia ajudado a construir. Das esculturas que ele e outros, seus irmãos, faziam nos grandes edifícios. Dizia-lhe que todos os trabalhos tem um porque, são símbolos de histórias muito antigas e que todos procuravam aproximar as pessoas de Deus.
-- Por isso queres tirar o Anjo da pedra? Tirar da pedra o que ela tem dentro é o mesmo que esculpir? Como é o nome dos instrumentos que usas no teu trabalho? Por que estás de avental de couro? —E, pacientemente o homem ia lhe dando explicações, o nome dos instrumentos usados em seu Ofício e para quê serviam. Passou-se o inverno e chegou a primavera. Um pé de Acácia Mimosa começou a florir e florzinhas amarelas eram como bolinhas de ouro ao sol e o menino podia vê-las da janela de seu pequeno cômodo que servia de quarto. Mas naquele dia, o escultor não foi vê-lo... O menino chorou e esperou ansiosamente... Mas nada! Passaram-se três dias. No amanhecer do dia posterior, chega o escultor, com um grande embrulho enrolado em seu avental de couro.
-- Meu amigo, tu me abandonaste! - diz-lhe triste o menino!
-- Não, amigos são como irmãos e um jamais abandona o outro. Vamos ver “nosso” Anjo de pedra?
--Viva! Terminaste? Vamos!
O escultor já velho e um pouco fraco, encheu-se de força, pegou o menino no colo, e levou-o até onde estava o tão falado bloco de pedra.
--Mas lá está um Anjo! – disse o menino -E como é belo!
O escultor colocou-o sobre os ombros para que visse o rosto do Anjo e examinasse a obra em todos os seus lados e detalhes.
-- É belo! É belo! – Dizia o menino. E quis descer para o chão, tocar aquela pedra que agora era tão lisa e lustrosa que parecia viva. -- Há sempre um Anjo na Pedra?...
Disse-lhe, a sorrir bondosamente, o escultor:
-- Dentro da Pedra há o que quiseres que tenha! Eu queria um Anjo! A pedra disforme, neste caso, escondia um Anjo. Em, sendo bruta, ninguém a achava bela. E não era só tu que duvidavas que de lá eu tirasse um Anjo!... Mas eu queria tirar de lá um Anjo e assim o esculpi, com muito trabalho, persistência, paciência...
-- É o “nosso” Anjo? – perguntou o garoto.
-- É o meu Anjo, mas é “nosso”, pois se não fosse tua companhia, a água, as frutas, o pão, o vinho, as tuas perguntas, talvez eu não conseguisse esculpir um Anjo tão lindo! Mas nós nos tornamos amigos e eu jamais iria desapontar um amigo! Tinha que fazer o melhor que eu pudesse!...
Conversaram mais algum tempo e então o escultor disse ao menino:
-- Agora, já é tarde! Vou ter levar para casa!
-- Ah! Não! Fica comigo! Não quero que tu vás! Quero que me ensines teu Ofício!... Quero ficar contigo!...
-- Vou entregar o Anjo na Catedral onde deverá ficar. Depois voltarei e te ensinarei meu Ofício. Voltarei em breve. Poderás controlar o tempo pelas Acácias. Antes que termine seu tempo de floração, voltarei!
-- E vais me ensinar?
-- Certamente! Estou velho e já me faltam as forças físicas. Não te deste conta do embrulho que te levei e deixei sobre tua cama, no momento em que te peguei no colo? Lá está meu avental, o cinzel, o martelo, o prumo, o esquadro, o compasso, enfim, todos os instrumentos que uso no meu Ofício. Vou te ensinar a Arte Sagrada da Geometria, da Arquitetura e da Escultura. Mas preciso que me prometas uma coisa!
-- Prometo, prometo sim! – disse o menino feliz e já com as faces rosadas, sem sinais de doença, cheio de alegria!
-- Primeiro: não contarás a ninguém o que eu te ensinar, será um segredo só nosso! Segundo: dentro das pedras muitas coisas existem. Só te ensinarei se sempre “procurares tirar um Anjo da pedra,” isto é, sempre esculpirás o Bem e para o Bem! E outra promessa: sempre irás dedicar a Deus Nosso Senhor e São João tudo o que fizeres, sem te envaideceres com o que sair de tuas mãos, nem jamais te orgulhares do teu conhecimento!
-- Prometo! – disse o garoto com um seriedade incrível para sua idade.
Despediram-se com um abraço afetuoso.
O menino ficou admirando as ferramentas, brincando com elas, e sonhando com muitos Anjos a descobrir na pedra bruta...
Antes do final da primavera, com as acácias ainda a florir, voltou o velho homem, e dedicou-se até o fim dos seus dias a ensinar o menino... A descobrir que “há sempre um Anjo na pedra...” Basta apenas que nós queiramos desbastar a pedra bruta...
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Obs.: Minha mãe contava esta história, que lhe foi contada por seu pai, e a este, por seu avô, e a este... Bem, perde-se no tempo das histórias da família... Como é uma das histórias das quais eu muito gostava, e não a encontrei escrita, resolvi registrá-la aqui, talvez não com toda a beleza original, mas conforme me lembro hoje, tanto tempo depois... Contei a meus filhos e espero que estes a contem para meus netos... No dia em que estes chegarem!... Mas creio ser importante também compartilhá-la com meus amigos do Recanto...
Caso alguém conheça sua autoria, agradeço se me for enviada!