"In your hand, In your hand, In your hand..."
"In hour hand they are fighting, they are crying, they are still fighting, they are dying... Zombie!" The Cranberries.
Tem sangue escorrendo da minha cabeça. Eu fecho os olhos, prendo a respiração, e aperto bem um lábio contra o outro. Não quero ver, não quero sentir o cheiro nem o gosto; eu já nem mesmo sinto a dor. Instaura-se uma guerra cruenta entre meus sentidos e minhas emoções; há um exército insano que grita em ataque contra as paredes da comporta da minha alma. Eu preciso me esvaziar dessa turbulência fluida de gozo e amor que me pressiona de dentro pra fora; mas, pasmem, é a razão quem diz "Não!".
O meu franco raciocínio se opõe ao que clama tão sonoro o meu opulento espírito: como quem pisa em carvão incandescente, assim dançam os meus pés sobre aquele batalhão de apelos. Mas é a minha razão quem grita para eu não abrir as comportas e suportar o acúmulo dessas águas revoltas. Sobre a minha cabeça jorra sangue, jorra mar, jorra gozo, jorra lágrima. Lavam a minha face de uma dor que eu não sinto. O meu corpo está em torpor: para sustentar-me em minhas próprias pernas, aplicam em minha veia doses cavalares do mais potente anestésico moral - o álcool. E por isso, o mundo em preto e branco, e em tons do mais severo cinza, torna-se suportável. E por isso, atravessa-me uma espada de prata que toma meu sangue por glória; fere-me a brasa como se fosse eu um boi marcado pelo destino atroz; abutres selvagens desfiam a minha pele e costuram as minhas entranhas com seus bicos de agulha. Estraçalham a carne já fria que ainda sorri. Zumbi!
Sobre a minha cabeça batalham sentimentos; duelam entre si a verdade e o engano, a bonitas palavras e os tristes fatos. Mas não há vencedor, pois nesta luta todos se machucam e o único troféu são as cicatrizes perpétuas na alma. O espírito cativo arrasta lentamente as correntes atada-lhes aos pés pelo submundo da inconsciência, enquanto o corpo, aflito, reconhece a sua origem e quase se devolve ao pó. Os grilhões do passado são de ferro e pesam o presente, tornam quase impossível chegar ao futuro. O terrível embate entre as vontades, próprias e alheias, faz-nos submeter a nossa existência ao júri popular. Mas, quem insiste em me condenar? Quem se sacia gulosamente com o prazer do meu golpe de misericórdia? A este seja dado o azar da minha vida; a resistência de quem não morre de amor nem de fome, porque se alimenta do próprio sangue. Eu me alimento de mim!
Mas, já disse, não há dor. Não há remorso nem mágoa. Não há vilania! Há uma angústia tolerável. Há o sobrepor dos dias. Há um encenar, um cumprir de roteiro; e tudo se dá em câmera lenta, em ritmo letárgico. Também não existe ensaio: é a passagem única pela guerra por mais um suspiro de vida. Na vida a gente não faz mais que mendigar em suplício um último suspiro. É a mesquinharia da sobrevivência, quando algo nos falta e é necessário não ter orgulho para estender o braço e rogar a esmola hostil; e ter esperança de que todos falem o esperanto e entendam que o que falta a um é justamente um pouco do que é do outro.
Até que isso aconteça e a guerra se apazigue, amputa-se um braço, a perna necrosa, mutilam-se os dedos, o peito é estraçalhado e a garganta exposta à lâmina afiada deste cruel jogo onde se aposta emoções. A gente deixa pedaços por onde passa, mas eu continuo o meu caminho, ainda que me arrastando, enquanto não me perfurarem o ouvido, e eu puder ao menos ouvir o pulsar de um coração.
Afinal, massacrado e vituperado o meu corpo ao chão, esgarçando o seu último fôlego; sobreviverá a memória do que só foi CORAÇÃO.
"Porque sobre a nossa cabeça os sentimentos lutam, choram, insistem na luta, até que morrem..."