Noturno - O nascer da palavra.

Às vezes tenho vontade de só respirar, mas me lembro que estou viva. E sigo.

PRIMEIRA PARTE

Decidi que assim seria melhor e tenho convicção plena que essa foi a melhor decisão que tomei em toda minha vida: escrever à pena.

Toda a cautela que tenho em desenhar letra-por-letra me dá tempo suficiente para organizar meus pensamentos enquanto escrevo e gero esse pedaço de mim em tinta crua.

É como se eu pudesse respirar cada letra que eu escrevo, eu vejo cada poro da palavra e aspiro sua vida, como os vampiros das lendas, toda para mim.

Esses contornos que se deslizam pela pena me tiram a concentração do texto, mas escrevo, numa atenção quase que exclusiva das palavras. E escrevo...

Fecho os olhos, pois as demais palavras vão se fazendo de olhos fechados; à noite; e tem um piano, com algumas notas trocadas, mas toca uma sonata...

As palavras que de mim saíram, pareciam tão desordenadas, se alinharam ao tempo que dei à elas pelo contorno da pena. Contorno lento, detalhado, com tinta que não é eterna.

{São três momentos distintos e, caso seja um leitor desatento, essa é a última chamada: ou se aspira vida, ou se perde a concentração, ou se ouve o piano.}

SEGUNDA PARTE

Palavra tem vida sim, e suga vida também. Errados os que pensam das palavras apenas sua força em corromper, e articular. Isso é só conseqüência de se ter vida. Se não por instinto, são palavras vivas. Detém a si mesma a força vital que me mantém. E dói. Como filho que sai do ventre, em gritos, lágrimas e sangue. Palavra que nasce como filho que sai lento. Mas que dói. E depois de escrita repousa no papel como o filho que sossega no seio materno. A palavra é o filho que alimento de mim.

Não entende o que digo? Pois não digo para ser entendida, mas me faço de alguns caprichos e quero que atente-se.

Escrevo enquanto dói, mas não escrevo dor, porque senão ela se inquieta e não dorme. E se eu escrever dor terei um registro de como foi o parto do texto. O melhor é fechar os olhos. Sentei na varanda, ainda em êxtase por me entender viva, vi mães que correm atrás de seus filhos para que os carros não lhes machuquem. Às vezes têm duas ou três mães juntas, e dizem das proezas de seus filhos. Hoje ele aprendeu os números, amanhã todo o alfabeto, e em seguida, faz-se doutor. “O destino preparou um grande futuro a esse pequeno”, e todos dizem amém. Não entendem elas, as mães, que seus filhos são sempre os mesmos? Que nascem, choram sem sentimento, alimentam-se delas, dão passos pequenos e vão...

TERCEIRA PARTE

Prefiro ser mãe com as palavras, do que ser mãe das palavras. A palavra é uma excelente filha. “Sophie”. Se eu sentasse no banco do parque com outra mamãe para falar das artimanhas dessa menina. Ah! Tem dias que sai com cada uma. É palavra inquieta, é palavra viva, que se desenha sozinha, que se alimenta de mim, mas que se estrutura só. Cresceu comigo. Ensinou-me como lidar com ela em todas as fases. Às vezes quando criança saia da linha, mas com uma borracha se arrumava. Hora se exaltava e saia maior que as outras, tinha vezes que teimava em se pintar e ficar mais colorida do que as outras. Sentia que era para ficar bonita. Palavra. E já ouvi relatos de mães contando de suas filhas, na idade inocente ainda, que se saísse da linha tinha que corrigir. Mas crianças são mais fáceis do que as palavras. A criança você cria, a palavra nasce criada. E a borracha da criança a mãe arruma, mas no papel ainda fica a marca do erro. E tem meninas que usam as maquiagens de suas mães. Vão crescer. (Também a palavra).

E você nem percebe que ela cresceu. Usa do tempo da pena a palavra. Usa do tempo que não mede o jovem.

Palavra que dança. Põe vestes curtas, olha nos olhos, fixa o olhar, me detém a ser dela, a ser para ela, e me seduz, palavra que vira em câmera lenta, e se curva na ponta fina da pena, de olho fechado ergo e enquanto escrevo, eu a sinto, saindo de mim, uma palavra unida à outra. Dança, dança, pois é chegada a hora de celebrar o encanto que me toma. Palavra-bailarina com pouso leve de borboleta. Dança leve, deita e levanta em pluma, e repousa em silêncio. Borboleta. Transcende.

“Sophie”. Agora de mim usa só a pena, e suga o tenho que a lhe dar. Palavra que nasceu da dor, se alimentou do ar, e se fez registro em papel. Como pode, mesmo sendo pedaço meu, parte de mim, não ser minha? É assim a filha. E também a palavra.

Dê sentido à ela, redija-lhe um belo contexto, pois quando crescer ficará bonita.

E cresce. Como cresce! Eleva-se incontroladamente, e segue. As mães ficam velhas, mas as palavras mantém-se jovens, mas ficam mais bonitas. As mães não. As filhas crescem, e são reflexos de suas criações. Como pode a palavra ser tão filha assim?

Tem vezes que não sei mais em que patamar ela está. Cresceu tanto. Nem sei mais se parece tanto assim comigo. Mas é uma linda menina. Ela é muito bonita, contorna mais, não arredonde muito. Palavra bonita é aquela mais retinha, com pose de menina delicada.

Hoje ela é poetisa, e desenha com pessoas.

(Porque tem poeta que desenha com palavras, mas a minha...ou melhor, mas ela que era filha, desenha com pessoas.)

E se enfeita toda, é tão linda, que nem lembro mais como pode pluma nascer de dor em sangue. Como se mistura bem com as pessoas.

Eu fico, mas ela nasce nova, com a mesma façanha de quando ainda menina, mas agora mulher, ela tem o dom de narrar nas pessoas e descrever no olhar o pouso da bailarina - borboleta.

Fica em silêncio que ela passa, e você vê minha menina.

Agora ela é poetisa, e todos que a olham dizem que linda é, como é nova, como é leve, como é viva. Se fez na canção das lágrimas, mas se firmou no sopro de vida.

Eu fico. Ela segue.

Ísis Almeida Esth
Enviado por Ísis Almeida Esth em 14/12/2008
Reeditado em 20/09/2010
Código do texto: T1334460
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