O que sou?
Sou estar de pé diante de um susto.
Sou artesanato de vida.
Sou o que voa continuamente e não pára.
Sou o que foge para longe. Mas não entendo e também não sei para onde.
Sou bem menos que o minúsculo. Contudo, carrego um todo que me parece ausente de sentido.
Sou parte do silêncio luxuoso. O silêncio dos astros que rodam. O mesmo silêncio dos cães que olham. O mundo se me olha, tudo olha para tudo, tudo vive o outro. E neste deserto de alegria infernal, as coisas simplesmente sabem as coisas.
Sou absorvido pelo âmago de uma indiferença-interessada, perpétua e extremamente enérgica.
Sou toda uma amplitude.
Sou remoto a mim mesmo.
Sou-me inalcançável, como me é inalcançável uma constelação.
Sou imensamente livre porque a minha matéria primordial é maior do que tento interpretar.
Sou transbordante.
Sou como o peixe que mergulha pelas profundezas e lá respira como se nada mais houvesse. Só que a minha fundura é a noite. Meu estado latente. Nela a ansiedade suave se transmite através do oco do ar. O vazio é um meio de transporte.
Possuo a massa da luz. Minha alma tem a substância dos sonhos, o aspecto de uma canção desrítmica.
Ninguém me vê realmente, só um tal algo temporal e opaco.
E o que eu vejo?
Enxergo com olhos de míope o neutro que era ainda anterior ao humano. E a vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.
Me pergunta acerca do Deus?
Sei que tem a cor das paixões inocentes. A sensação dos ventos. Tem a indiscrição do cheiro. O tom de cirandas. A tal paz que excede todo o entendimento. Está no reconfortante sorriso da criança recém-nascida. Mas os fatos só fazem parte do volume abismal...
Vivo num mundo de grandes humanizações. Mas eis que o puramente vivo, o permanentemente primário, derruba a moralidade esmagadora e o inextricável de mim se superpõe. Se transforma em claridade angustiante.
Grito com toda a força muda de um cadáver. E o grito não se vai. Ele está intalado na garganta do espírito.
Vou viver!
Mas a hora de viver é inexpressiva. O nada em si.
Aquilo que nomeio nada é, no entanto, tão colado a mim que me é. Pois o agora foi, e existo num futuro presente que já é o próprio passado.
Eu sucumbo.
Então transcendemos e vamos.
Eu somos.
*Inspirado na amiga atemporal Clarice Lispector