Divagações

Folhas secas, rolando pelo chão quente de agosto!... Desnudas árvores, apenas cobertas pela poeira vermelha dos caminhos!... Forte cheiro das queimadas, em meio a densas nuvens negras, prenunciadoras das primeiras chuvas de setembro!...Tristes e longínquos ensaios das cigarras, saudando a primavera que se avizinha!... Tudo enfim, me angustia e entristece, pois que injeta em minh’alma estranhos desejos de fuga, caminhadas sem objetivo nenhum, sem procuras nem encontros definidos!...

Contudo e a despeito de tudo que muito me sensibiliza e instabiliza emocionalmente, não é de infelicidade o meu estado psicológico. É de tristeza, tão somente. Uma grande e funda tristeza que me vai envolvendo mais e mais... Tristeza nascida da felicidade de quem entende e ama a natureza, o bastante para poder avaliar seus sofrimentos nestes dias terríveis de inverno.

Sempre me considerei imensamente feliz, sem excluir, jamais, do contexto desta felicidade que proclamo, a solidão e a tristeza, minhas companheiras de longa data. Sou um solitário congênito, um triste ocasional, um feliz convicto. Podem os desenganos, as decepções, a dor ou a incompreensão, arranhar e até ferir fundamente essa felicidade, mas destruí-la ou matá-la nunca, pois que a curo com minha fé e amor inquebrantáveis...

Busco, nas profundezas do mais distante passado, o embrião dessa felicidade e o encontro numa infância livre, solta pelos caminhos de minha cidade natal, sem as ameaças, a brutalidade, a insegurança e o desamor, que pairam sobre a infância dos nossos dias. E, assim cresci, acreditando nos valores positivos da vida, na liberdade, na justiça, no amor que constrói e engrandece a existência humana. Eram meus os bosques sombrios e acolhedores; os campos verdes e floridos a se perderem na distância, tomados de sol ou faiscantes de pirilampos; os rios de águas puras e cristalinas, onde eu pescava e banhava efusivamente, o corpo cansado de tanta felicidade; as matas centenárias, impregnadas dos cantos da passarada e que me ofereciam, a mancheias, os mais variados e saborosos frutos; o céu, imenso, de vastos horizontes, quase sempre azul, lindo nos dias de chuva molhando a plantação e enchendo os rios, ou nos dias de sol, clareando a terra e azulejando os montes distantes, sem se falar nas noites em que a lua cheia surgia, por entre um bilhão de cintilantes estrelas, a instilar no coração e na alma da gente aquela sensação gostosa de paz e amor, que ela tão bem sabe nos transmitir.

Assim se forjou e se alicerçou minha infância, sobre a pureza, o amor e o belo!... Infância rica de imaginação e criatividade, que me tornou artífice dos meus próprios brinquedos, cuja matéria prima ia buscar no seio exuberante e virgem da natureza.

Quando, aos quatorze anos, experimentei a dura e sofrida realidade do adolescente órfão, menos difícil me foi o amadurecimento precoce, que a nova situação me impunha, pois que trazia em mim uma alma inteira, forte, repleta de amor, de fé e de crenças, sem haver conhecido, jamais, as dilacerações provocadas pela desconfiança, pela incerteza e pelo medo. E, fui à luta, meio-menino, meio-homem, estudando e trabalhando, sem esmorecimentos ou descrença. Serviu-me essa fase de lutas e sofrimentos para que eu melhor me aquilatasse do valor extraordinário de minha mãe, incansável nos seus afazeres, insuperável na sua dedicação e grandeza de alma, - pronta para me sacudir e empurrar para frente, naqueles momentos em que o tédio e o cansaço se debruçavam sobre mim. Mãe, hoje octogenária que encarna em si, na sua simplicidade cativante, a grandeza que só as almas puras e cheias de fé e amor soem ter! Assim, fui um adolescente feliz, pois que, a par da ampliação dos meus valores intelectuais, mantive intactos, os meus princípios morais e espirituais forjados na infância.

Feliz me considero também, pelo moço que fui, meio-cantor, meio-poeta, estudando e lutando por um lugar ao sol...

Feliz, por haver trocado, aos vinte anos, os sonhos e as fantasias de moço, que o tempo e a luta não permitiram fossem muitos, pela realidade, facilmente assimilada do casamento, que nos propiciou, a mim e a minha mulher a formação e estruturação de uma família extraordinária, da qual muito nos orgulhamos.

Feliz, pelo que acredito ser nos meus cinqüenta e oito anos: um homem plenamente realizado, sem problemas, inimigos, temores ou remorsos; que olha a vida de frente, sem nada para esconder ou algo de que possa se envergonhar. Um homem que lutou, firme corajosamente, e sofreu também e muito, como é natural, sem permitir, contudo, que o sofrimento e a dureza da luta empanassem, jamais o seu amor sem fronteiras nem limitações. Amor que tem o destino da brisa que acaricia a folhagem ou balança as roseiras; que desconhece fronteiras, porque é horizonte, é céu, é mar... Amor que se extravasa e se derrama por toda parte. Calmo, como a paz que vem das montanhas ou das águas paradas... impetuoso, como a fúria dos ventos ou a correnteza dos rios cachoeirentos...

Um homem simples, eu sou. Sem grandes ambições, coerente com o seu passado e suas origens, que não se perdeu nunca, nem se mascarou, jamais. Um homem sem amarguras, ressentimentos ou recalques, que traz consigo a certeza do dever cumprido e aquela tranqüilidade dos que “ deram o seu recado” e disseram “por que vieram”.

Se me vissem agora, sozinho e pensativo, a rabiscar estas linhas, divisando os horizontes nublados, sem sol e sem brisa nestes dias de inverno, dir-se-ia que estou triste e eu afirmaria que sim, profundamente triste, porém, feliz por estar aqui, vivo, cheio de esperanças e alguns sonhos ainda, a registrar emocionado o que me vai n’alma e no coração... Triste, apenas triste, por estar aqui, parado, preso ao chão, como as cordilheiras ou as montanhas, quando prefiro o destino dos rios e dos ventos...

Agosto de 1980.