ALMA CIGANA
Alma Cigana
Certa vez, quando ainda menino, naquela idade em que o mundo e as cousas que nos cercam são uma eterna interrogação, aproximei-me de um acampamento de ciganos, montado em um bosque de minha cidade natal e perguntei a um deles, já de cabelos grisalhos: Moço, onde o senhor nasceu? Qual a sua cidade, a sua pátria? Respondeu-me ele: Cigano não tem pátria, menino. Nossa pátria é onde morremos...
O moço afastou-se sem que minh’alma de criança pudesse alcançar o sentido de suas palavras.
O cigano se foi. Foram-se, também, os dias, meses e anos, na vertiginosa caminhada do tempo... Ele, certamente, envelheceu ou já não existe e o menino tornou-se homem, enfrentou as asperezas da vida, que toldaram seus horizontes, antes azuis e dilatados. Seus sonhos de menino despreocupado e feliz, tornaram-se realidades duras e, por vezes, amargas, e, no torvelinho da vida, viu-se compelido, por circunstâncias várias, a demandar outras terras, na incessante luta pela vida. Deixou sua cidade. Lutou alhures... Sofreu... E, dizem que venceu.
Um dia, muitos anos depois, atraído, talvez, por essa força irresistível que vem da terra em que nascemos e que nos arrasta para ela, voltei um pouco mais velho e marcado pelos desenganos. Não encontrei lá muitas das cousas que foram motivos de alegria e felicidade para mim. Busquei, em vão, algo que me fizesse vibrar de emoção e saudade. Tudo estranho, diferente, decepcionante!...
Somente aquele bosque sombrio retratava em si algo do passado distante. Ali minh’alma quedou-se comovida! Lembrei-me do cigano. Daquele que não podendo, talvez, viver em sua terra, pouco se lhe importava estar hoje aqui, amanhã mais além.
Só então compreendi o sentido de suas palavras e pude avaliar a extensão do seu sofrimento e a vastidão da funda melancolia que seu rosto estampava ante minhas perguntas inoportunas e, para ele, deveras impertinentes. É que minhas palavras, cheias de simplicidade e inocência, foram o tufão que revolveu as cinzas do seu passado, que ele teimava em considerar morto e soterrado para sempre.
Já se tem dito que “Ninguém ama o desconhecido”. Mas, quando esse desconhecido é a natureza e esse ninguém é um cigano, essa assertiva se traí. Daí o amor imenso que o cigano sente pelo desconhecido, onde busca o lenitivo as suas mágoas e sofrimentos...
Como aquele cigano demandei outras terras, em busca de emoções novas, dizendo adeus a tudo que me foi tão caro em minha infância. E, desde então, tem sido minha vida uma constante peregrinação por esse Brasil afora.
Ainda ontem, quando menos intenso era o movimento do setor em que trabalho, pude, por alguns instantes, admirar a beleza arquitetônica desta querida Brasília e divisar, ao longe, como fundo de um palco maravilhoso e inigualável, um céu azul e imensamente belo!... Fitei-o por alguns instantes, alguns segundos, talvez. E, senti-me transportado dos limites estreitos da sala de trabalho para o infinito daquele céu sem nuvens, arrastado por uma força estranha e irresistível porém conhecida de mim e, muitas vezes, por mim sentida! A mesma força que levava aquele cigano a buscar outras terras, para satisfazer, tão somente, os caprichos de um destino inquieto e buliçoso... Força que leva todos os ciganos a cumprirem seu destino ambulante a caminho do desconhecido, até encontrarem sua pátria, ou melhor, a terra que será sua ao conceder-lhe a derradeira morada.
Não sou cigano. Afirmo, sem medo de errar, não correr nas minhas veias, sangue cigano. Ao contrário dele, tenho pátria, tenho o meu torrão natal, onde vivi uma infância e uma adolescência felizes. Apenas, como ele, não pude, por motivos vários, continuar vivendo em minha cidade natal. Será esse o motivo que fez nascer em mim essa indiferença que sinto em viver ora numa, ora noutra cidade, cansando-me de todas elas! Ou será que existe em mim uma alma cigana?!...
Outubro de 1970.