Sobre a beleza de amar (entre outras coisas)
Houve um dia, uma alma, a quem a minha queria muito bem, olhou-me e disse: “Você é tão bonita... E boa. Eu poderia até me apaixonar...”
Dado que paixão é coisa simples, fiz pontaria: “Imagine-se à beira-mar; imagine a areia, um castelo, o sol... De repente, uma onda enorme arrasta e eleva você, depois o arremete de volta na praia, e estatelado lá, dolorido, sem ar – e antes de quem sabe morrer – você abre os olhos e percebe que ‘ora, veja só, eu me apaixonei!’ Pois assim é a paixão, e não possibilidade, escolha ou plano.” (Após um instante de incredulidade, aquela alma guardou-se em si mesma, e nosso bem querer estranhou-nos – acho que ‘partiu-se como um bocado de vidro’, como diria Pessoa.)
E houve um dia, eu me apaixonei. Outra alma – metade rasgada da minha por um deus otimista (palhaço!) – pediu-me para escrever sobre a beleza, “não do bom de ver, mas do bem de sentir”. Não pude furtar-me a esta alma – como também à primeira –, então, com o que me sobra de amor, paixão e memória, eu relato.
Eu o conheci, e quis ser melhor, porque ele existia. O mundo passou a ser melhor, porque ele existia. As cores tornaram-se mais nítidas, os sons, mais livres, as ruas, mais limpas... Notei que as árvores atraíam mais passarinhos; os sapos pulavam com graça na lagoa e as tais setas transpassando corações nem os faziam sangrar, não... A grama deixou de espetar; aí, nuvens pareciam anjos ou carneiros, estrelas podiam virar verrugas nas pontas dos dedos. Percebi também perfeita inteligência nas formigas, voltei a comer luz, e minha pele ganhou gosto de esperança. Eu sonhava com mãos dadas e meu amor expandiu-se a filhos, amigos, pedras, panelas, e enxame de abelhas (eu disse – lembram? – quis ser melhor).
Mas a água alegre de uma tarde toldou-se de surpresa e solidão; então, agora, de mim, arco tenso, as lembranças flecham em mim, alvo lasso, absorvente de dor - afogado em dor, de fato, e quase como se fora em lago equivocadamente plácido...
E me pedem para dar uma chance ao esquecimento, ao tempo, àquele rapaz excelente, “pois tanta dor nem pode te fazer bem!”
Escutem! Entendam! Quantas vezes, no corredor de nossa agonia, conseguimos olhar para outras paredes? Sobre nossa angústia um teto nos sufoca, e quantas vezes conseguimos abrir uma fresta, criar um filtro de luz, ainda que bastante apenas ao culto de sombras?... Porque é a dor a tinta que reveste as paredes, como é a mesma dor o esbarro das telhas...
Para esquecer é preciso recompor formas, cheiros, cores, sons; abstrair a equação ‘não sonhar = sono tranquilo’; é preciso caminhar em linha reta – “linhas retas não sonham”, disse um poeta – e aprender a se equilibrar no fio com o coração aos pinotes.
Para esquecer há que ressuscitar o brincante da praia: ele voltará a passear à beira-mar porque as torres do castelo precisam de novas e resistentes conchas e de algas coloridas fazem-se lindos estandartes.
Para esquecer é mister ser possível, fazer a escolha, traçar o plano.
Demandaram-me dois atos, contrários em si: um prenhe de alegria, outro massacrado de necessidade. Pois bem: delimito que o 'bem de sentir' é esquecer quando a dor se torna insuportável; esquecer é lembrar sem dor.
Pretendendo não mais que isso, e sabendo de praias que ainda se darão a conhecer, equipei-me com boia, nadadeiras e prancha de surfe.
E sigo – colhendo plantas e cascas de bichos, o sol na cabeça e a maré lavando minhas marcas...