O amor se constrói e dói construir amor
parte 3.
- Os sapatos...
- Que quê tem?
- Deixe-os depois da porta.
-Por quê? Por que sempre tem que ficar, os sapatos depois da porta?
- Porque a casa está limpa, eles estão sujos. Casa limpa, sapatos sujos não combinam...
- Não concordo, não quero tirar os sapatos, não vou tirar os sapatos, não vou ficar descalço...
- Problema seu, faça como quiser...
- E vou fazer mesmo. Vou fazer isso que estou dizendo.
- Você e suas implicâncias. Que quê custa tirar os sapatos já que a casa está limpa?
- Para mim custa minha vontade de ficar calçado e não abro mão. Quero ficar calçado e pronto. Não tiro calçado nem nada...
- Tudo bem, tudo bem. Seja feita a sua vontade. Deixe as merdas dos sapatos nas merdas de seus pés. Com certeza devem ser mais limpos, os sapatos que os seus pés. Pronto. Seja feita a sua vontade.
- Foi para isso que você me chamou? Foi para isso? Para fazer como sempre seu circo a parte? Bravo, bravo. Quer que aplauda? Quer algo mais? Alguns gritos? Estou cansado, realmente cansado. Não agüento mais essa situação. A gente não se entende...
- Já ouvi isso várias vezes. Como se fosse disco arranhado. Isso nós já sabemos... Que mais? É só isso e pronto?
- Não sei. Realmente não sei. Não parei ainda para pensar direito. Não quero ser precipitado.
- Você e seu ego. Sempre você e você e você... E eu? Como fico? Esperando sua vontade?
- Não, não é isso que espero de você. Por isso é que espero uma atitude sua. Não precisa esperar que seja minha a atitude, a ação. Falo por mim porque não sei mesmo. Sinceramente é muito doloroso...
- Doloroso? Doloroso é o tempo da espera...
- Doloroso é saber que eu amo você, mas mesmo amando nossas diferenças nos impedem de sermos felizes. O espaço que dividimos torna-se pequeno demais e isso acaba nos sufocando.
- Interessante como as coisas mudam, não é? Há tão pouco tempo o pensamento era outro, a vontade era outra...
- Não estamos discutindo o ontem, estamos falando do hoje. O que sentimos, o que queremos, como estamos vivendo. O hoje, isso é importante. Como você me ver?
- Como?
- Isso mesmo, a pergunta é essa. Como você me ver?
- Ridículo isso...
- Para você tudo é ridículo. Eu sou ridículo, minha imagem é ridícula, o que penso, como vivo, o que sinto. Sempre foi assim. Nossos mundos sempre foram anônimos, nossos amigos são anônimos, vivemos em mundos anônimos. Tudo se restringe a esse apartamento.
- Mas tudo isso foi acertado desde o começo. Tudo foi falado e combinado pelos dois. As condições foram expostas e isso nunca foi empecilho para nossas vidas...
- Para você bebê chorão, para você. Nada foi acordado, nada foi acertado. Tudo foi imposto, foi a sua condição e eu apaixonado me deixei levar. Não te culpo, não posso te culpar. É esse amor ensandecido que nos faz pensar com os cotovelos e acabamos trocando os pés pelas mãos...
- Hei, que é isso agora? Que discurso é esse? Você bebeu mais uma vez? Bebeu, vamos diga. Bebeu. É por isso que está assim, sem saber o que diz. Covarde, covarde, isso é o que você é. Um covarde, um mísero covarde.
- Bravo, bravo. Como você conseguiu definir bem quem dorme toda noite ao seu lado, não? É isso mesmo que sou. Um covarde, um mísero covarde porque recusei, por que traí a mim mesmo, o que sempre construí ao longo de uma vida inteira. Covarde, da pior espécie. Covarde, traidor, ordinário. Mereço umas boas bordoadas, não? Umas boas pancadas para ver se crio marra...
- Isso mesmo que deveria fazer, encher sua cara de porrada para ver se criava marra. Beber para perder o controle.Beber para despejar sobre mim palavras insanas...
- Bêbado de dores, essa foi minha bebida. Dores, desalento, solidão. Essa é minha bebida para seu governo. Tentei beber o que estava me matando para ver se digeria mais rápido. Você não sabe de nada, não sabe o que diz. É um pobre ser que só consegui enxergar na altura do seu umbigo. Tudo gira em torno de seu umbigo e nada mais.
- Durante todos esses anos, nós nunca tivemos uma conversa como esta. Nunca houve um diálogo como este.
- Porque nunca houve conversa, nunca houve diálogo, sempre monólogo. Você dizia e eu aceitava tudo porque sempre tive medo de te perder, medo de que você me deixasse, fosse embora, logo eu, eu, tão mais velho que você, era tão mais seguro...
- Pare não quero mais ouvir nada...
- Você nunca quis ouvir, esse é um dos seus males, não sabe ouvir, não gosta de ouvir, não quer ouvi, nunca ouvi, nunca. Por isso que digo que nunca houve diálogo entre a gente, sempre monólogo, e eu que sempre disse que não ia dá certo. A sua juventude um dia iria ter necessidade de viver outras realidades e você nunca quis uma relação aberta, dialogada.
- Mas o que fiz? O que faço para tanto te aborrecer, sou fiel a nossa relação, sou fiel no que sinto por você, caralho. O problema é que você quer ser o senhor de minha vida, decidir, determinar, controlar tudo e não pode ser assim. Você me ensinou a ser um ser pensante, você me construiu...
- Não consigo construir monstros...
- Como é que é?
- Não consigo construir o desconhecido. Você não se mostra verdadeiramente, não sei quem é você. Ora diz uma coisa, ora diz outra, ora enche-me de beijos, ora esbofeteia-me, dispara uma metralhadora de coisas que não mereço.
- É você nunca merece porque sempre foi rodeado de meia dúzia de pessoas que faz de você o senhor sabe tudo, um bando de mela cueca que não sabem na verdade de nada. Nunca vão contra o senhor razão, o senhor supra-sumo da verdade. Merda suas verdades par mim. Ultrapassado modo de pensar.
- E demorou quanto tempo para descobrir isso? Por que não disse isso há mais tempo?
- Porque tudo no seu tempo, não é isso que você diz?
- Sempre me querendo pegar pelos pés. Sempre querendo me ver em contradição. É desse jeito que diz que me ama? É desse jeito que sonha uma relação com outro ser ou é por isso que me anula tanto do seu convívio?
- Não questione os meus sentimentos por você, não tem direito de fazer isso. Você sempre deixou claro que não aceita meus amigos, porque tenho que fazer esforço de juntá-los a você?
- Não quero esforço, nem de você, nem de ninguém. Odeio isso. Já me basta o esforço das pessoas que sempre viveram ao meu lado e dizia me aceitar com sou por esforço, por mero esforço e quando me viraram os olhos, pelas coisas, diziam coisas absurda...
- O que é isso no seu bolso?
- Nada de interessante, não vem ao caso...
- Como você sabe que não vem ao caso?
- Por tudo que foi dito aqui. Não tem sentido, nada tem sentido.
- Posso ver?
- Acho melhor não. Tudo é tão mentiroso entre nós.
- Por favor, deixe.
- Prefiro não, já disse.
- Faz isso comigo não...
- O que está feito, está feito. Tudo está quebrado entre nós.
- Vejo que é um embrulho...
- É um embrulho...
- Parece presente.
- É um presente...
- Para mim?
- Pare com isso. Você sabe que é. É um presente, é para você. De repente vinha passando e vi em uma loja de cd, achei que ia gostar e...
- Posso ver?
- Não, acho melhor não... É uma cafonice, assim como eu. Nem sei ao certo se você gosta, se vai gostar...
- Claro que você sabe, você sabe tudo sobre mim...
- Não, não sei. Você é um eterno enigma, algo que desconheço a cada dia.
- Não é verdade e faz de tudo para mim ver assim como estou.Deixe-me ver, mate logo essa curiosidade...(entrega o presente) Nossa, o cd da Cássia Eller cantando o Cazuza, O veneno ante monotonia!!!Precisamos ouvir, venha...
- Não, não quero ouvir nada. Você sempre dá um jeito de fugir...
- Estou fugindo não, veja, tem a música que amamos... " Eu quero a sorte de um amor tranqüilo..."
- Hoje eu não quero mais nada.
- Como? Cara deixa de ser chato.
- Chato, mesquinho, egoísta, não é isso?
- Olhe para mim. Agora não. Agora vamos curtir esse presente que é nosso.
- Não, é seu, só seu. Comprei para você.
- Mas o que é meu é seu.
- Não. O que é seu é só seu. O que é meu é só meu.
- Por que isso agora?
- Por que assim é que deve ser.
- Está me mandando embora, é isso?
- Já disse que não sei, não quero tomar nenhuma providência sem pensar direito. O que sei é que não estou bem.
- Deite aqui, venha. Vou acender um incenso e vou lhe fazer uma massagem daquelas. Acho que você está tenso, precisa descansar. Venha. Venha. Deite-se, eu sei que você gosta.
- Você e o seu jeito de resolver as coisas. Não gosto disso.
- Só estou querendo ficar próximo a você um pouco, sentir a quanto bate seu coração, venha, dei-me sua mão. Se quiser eu abro um vinho e podemos beber juntos...
- Como se você não bebê?
- Posso fazer isso por você. Por você eu faço qualquer coisa. Chegue, meu filho,venha de uma vez. Depois podemos tomar banho. Eu dou banho em você, como sempre... Passo minha língua em suas virilhas e te deixo como gosto.
- Não é de sexo que preciso, não generalize as coisas.
- Eu sei que você quer, sempre quer, nunca me rejeitou.
- As coisas mudam, tudo muda. É só olhar ao nosso redor. Tudo muda. O se humano, nossa vontades, a vida, o tempo. Veja, ontem fazia um frio danado, hoje, quanto calor... É assim.
- Com as relações não. Com as relações só mudam assim... Não, não pode ser. Quem é, diga, quem é? Você está amando outra pessoa? Conheceu onde? Diga, quem é? Eu conheço, conheço? Foi na última viagem que você fez? É de orkut? Bate papo, diga de uma vez.
- Quando você quer, consegui realmente baixar o nível. Não transfira para mim suas realidades. Não coloque para mim os seus costumes. Quem vive de orkut e bate papo é você, você que conhece esses seres ridículos que ficam se jogando para cima de você, marcando esquema, encontros... Não deixe cair assim a carapuça, não serve para mim.
- Não é verdade. Eu te amo e meu amor por você é incondicional, nunca o trai, nunca...
- Não? Tem certeza?
- Tenho, tenho sim. Tenho a máxima certeza que meu amor é só seu. Nunca duvide disso.
- Acho melhor dormirmos.
- E o vinho?
- Não quero beber
- Por quê?
- Não tem por quê.
- Tem sim, sempre tem. Declame-me um texto.
- Não tenho inspiração...
- Por favor...
- Não quero!!
- Por menor que seja.
- Essa sua jovialidade me é tão necessária, o ruim da vida é que nunca podemos demonstrar o que realmente somos, devemos ser sempre personas de nós mesmos para podermos ser aceito diante da sociedade. Eu te contemplo, veja, e me vejo no seu olhar, refletido. Fico a pensar como me chega até você, como me vês e eu a ti. E nesse jogo de reflexo, tenho vontade de prender-te os pulsos e de impulso, roçar a nuca com minha barba, morder-te as costas e fazer loucura, curar nossas dores em jogo de línguas, sacrossantas línguas a digladiarem no espaço santo de nossos corpos, e rotos, lassos, deitar um sobre o outro em gozo profundo, fundir nossas almas e que não haja testemunha, morrer, morrer em seus braços de amor, amor, ah amor maior que tudo que sinto, maior que eu, maior que nós e todo o universo... E de volta a realidade que nos prende, somos tão distantes, estamos tão distantes...
- Não. Não é verdade. Espere, escute. Você sabe que é tudo que eu sempre sonhei, você é diferente de todas as pessoas que já me apareceram. Sempre te julguei grande demais, inteligente demais, superior demais as minhas expectativas, você sabe disso. Nunca me achei a sua altura, nunca me achei ideal para você, sempre soube que você merecia algo mais que eu...
- Olhe...
- Lembra-se de nossa primeira viagem? Nós dois, só nós dois subindo a serra, você morrendo de medo de dirigir e eu que nunca tinha subido, nunca tinha ido lá. Quantas vezes paramos, lembra? Quantas vezes nos beijamos e fizemos amor ali mesmo, lembra? Tão gostoso. E na pousada que ficamos? Tão frio e você não queria que vestíssemos roupa, nem quis acender a lareira. Foi laquê você leu par mim o último capítulo da trágica história do Romeu e da Julieta.
- E você adormeceu antes da história acabar.
- Não, não e não. Agora escute, você tem que me escutar. É esse um dos seus problemas, nunca quer escutar e depois diz que sempre só existiu monólogo entre nós. Escutar é um exercício de alma, eu aprendi isso com você. Você é muito inteligente e eu sempre me perdi em suas palavras, mas aos poucos fui entrando no seu universo, no universo do conhecimento que tens. Com você eu aprendi a admirar grandes coisas que antes desconhecia e aprendi a compreender com você. E hoje eu sei que te amo além de mim e isso é uma verdade, é uma realidade... Vamos subir aquelas escadas, agora, deixa eu ninar você.
- Não é assim que se resolve, e depois, e depois de tudo. Vai acabar no sexo, na recompensa do desejo do nosso corpo de estarmos juntos. Depois vem o vazio, o que não se encaixa, as nossas dores esquecidas. Não pode ser mais assim...
-Lembro-se agora do dia em que nós nos conhecemos. Éramos outras pessoas. Nossos corpos molhados, as roupas pregadas nos corpos e você tão preocupado que pudéssemos adoecer. Pegou coberta, apresentou-me seu quarto, tirou minha roupa e tomamos um banho demorado, um banho quente, lembra? Descemos as escadas, você colocou música, eu acendi uma vela e nós dançamos ao som de uma música esquisita, francesa, que eu amei e amo até hoje.
- São coisas da memória...
- Não, não pode ser, é a nossa história, nossa, minha, sua. Não pode ter esse fim, não pode.
- É a lei natural da vida, infelizmente ou felizmente, as coisas têm começo e tem fim.
- O que você está dizendo? O quê?
- Por enquanto nada, apenas refletindo sobre o que você está pensando alto.
- Não é verdade e não queria me enganar. Não me engane. Já está tudo planejado não é? E hoje, não é logo hoje que fiz sua salada preferida, acenda uma vela vai, logo hoje que saí do trabalho mais cedo para te fazer uma surpresa você vem e me apunhala pelas costas. Ai como eu me odeio, como eu me odeio por ser burro, estúpido, por te amar assim. Eu me odeio, odeio.
- Para que tanto ódio? Não somos culpados, apenas amamos e só. Não é motivo de culpa, de ressentimento, nada disso.
- Olhe bem nos meus olhos.
- Por que isso agora?
- Estou pedindo, olhe bem nos meus olhos...
- Não acho isso necessário...
- Olhe. Agora diga com toda sinceridade, você deixou de me amar?
- Não. Eu amo você a cada dia mais.
- Sério?
- Você sempre duvidou, não foi?
- Não, você sabe que não.
- Pois então?
- Pois então digo eu, o que será que está acontecendo?Diga de uma vez. Se me ama de verdade, por que tudo isso? Você está me maltratando.
- Só agora? E quanto tempo venho sofrendo e você nem percebe? É justo também? O nosso amor, a forma que nos amamos causa em mim dor e eu não quero isso para mim. É doloroso. Sonhei com um amor que fosse só meu, que eu pudesse dividir apenas comigo, eu sou assim. No começo foi assim. Agora sou eu, seus amigos de boate nas sextas, suas amigas de almoço nos sábados, a turma do trabalho e eu tenho que agüentar, tenho que conviver com tudo isso sem querer porque você acha que quero te controlar, decidir sua vida, e não é isso. Não é. Por mais que seja racional, eu me deixei escravizar pelo amor que sinto. Embriaguei-me de sonhos e agora estou sendo obrigado a colher o que não desejo, não desejo e eu não mereço isso, não mereço. Não tenho mais idade de aceitar e passar por coisas que não me satisfazem. E isso não me satisfaz. E eu não quero que você decida por mim. Decida por você. Odeio que me joguem na cara o que não mereço e eu não mereço isso. Mas eu sabia que iria passar por isso, não sabia? Sabia sim. Você tão jovem,tão bonito, musculoso, de encher os olhos de quem passa, na flor da idade...
- Olhe aqui, me deixe dizer uma coisa, não adianta tentar chantagem emocional que não vou cair. Sou mais jovem mesmo que você, mas isso não quer dizer que o seu amor por mim é maior pelo meu amor por você. Não é. Também não vou renunciar meus amigos por causa de nossa relação. Você sabe muito bem como sou, você me conheceu assim...
- Não é verdade, a pessoa que eu conheci era diferente, muito diferente. A rotina que te transformou, que te mudou.
- Não, isso eu não posso aceitar...
- Você nunca aceita o que eu digo.
- Você está sendo estúpido.
- Eu sempre sou alguma coisa de ruim para você. A pedra no meio do caminho, o inferno de Dante, o mito da caverna do Platão. Sempre sou e agora sou estúpido. Vai pro inferno antes que eu esqueça. Vá procurar sua turma, vá ser feliz do seu jeito. Estou cansado. Não precisamos disso, chega. Cada um para o seu lado. Não era assim que eu queria, mas se é pra ser assim, que seja.
- Você não está falando sério.
- Nunca falei tão sério em toda minha vida.
- Hoje é nosso aniversário de casamento.
- É, eu sei, por isso tinha evitado desde o começo conversar.
- Comprei-lhe um presente.
- Não precisa.
- São as passagens de nossa tão sonhada viagem para a Itália.
- Agora é tarde.
- Sempre sonhamos conheceras ruas por onde andou o Da Vinci, esqueceu.
- Era sonho meu, não tente me agradar, não complique as coisas, por favor.
- Conhecer os afrescos da capela Cistina, o Vaticano, andar de Gôndolas, conhecer a torre de Pisa...
- Pare com isso...
- Que horas são?
- Quase meia noite.
- Quase meia noite? Posso esquentar o jantar?
- Perdi a fome.
- É uma receita nova que eu aprendi, uma salada leve, vai te fazer bem.
Também tem uma pizza e tem refrigerante, por favor, faz isso comigo não. Pode ser o nosso último jantar.
- Tudo bem, tudo bem, o que você me pede que não faço?
- Antes traga uma garrafa de vinho e coloque aquela música, a música da princesa desenganada que pede ao amante que não vá, não vá... E dance comigo, pela última vez.