Só meu gato me entende
Há vinte anos eu vim para esta montanha, para viver sozinho. Há vinte anos, apenas a natureza, as lembranças e meu gato me fazem companhia. Há vinte anos eu não ouço uma voz além da minha, e as palavras vez ou outra se escondem dos meus lábios, e os rostos dos meus amigos aparecem cada vez mais borrados em sonhos. Hás vinte anos nenhum humano escuta meus gritos e às vezes eu até duvido se algum deus à imagem e semelhança dos homens ainda escuta minhas preces.
Há vinte e três anos nasceu a filha do meu melhor amigo, no mesmo mês que meu primeiro sobrinho. Provavelmente os pais deles contam muitas histórias de mim. Eles devem achar que eu sou um louco, um profeta, ou ambos. Da última vez que eu vi os mais jovens de minha família eles me olharam com estranheza. A menina tocou minha barba como se não entendesse como o cabelo saía de meu rosto.
Há quase trinta anos eu perdi a última mulher que amei, e há quase trinta anos o primeiro de nós foi embora. Eu só chorei pelo último, mas as duas dores foram igualmente insuportáveis. Eu escrevi muitos poemas depois. Eu não escrevo mais poemas agora. Naquela época eu falava muitos idiomas. Hoje mal consigo lembrar minha língua materna. Eu aprendi a falar outra língua, uma língua que só meu gato entende. E foi assim que descobri que não mais seria possível viver entre meus semelhantes, estranhos ao que carrego dentro de mim, mas comum para os que possuem o espírito selvagem. Isso foi uma das coisas que me trouxeram para cá.
Há quase trinta anos eu não falo com minha mãe. Acho que ela já morreu a essa altura. Acho que eu também já morri. Só as lembranças sobreviveram, mas até quando? Há quase cinco anos eu vi uma bomba explodir longe daqui, e uma onda de fogo devorou as árvores do vale. Quantos de nós ela devorou também? Quanto de nós ela devorou também?
Há três anos eu estou doente. Talvez já estivesse doente antes. Eu trouxe a doença para este lugar, trouxe de entre os homens, lá de onde vim, e ela cresceu em mim, para me dizer que não posso mais fugir, para me mostrar que onde quer que eu vá haverá a humanidade, pois sou homem, e não fera. Meus sonhos não foram capazes de suplantar a realidade. Minha fé não moveu montanhas. O nirvana não me livrou da dor. Mas o mundo ainda é mentira e ilusão, e tudo que há dentro dele, inclusive suas verdades. Eu cheguei a pensar em voltar antes de morrer, mas não tenho mais forças. Há vários dias não consigo levantar da cama. Estou fraco e meu corpo já não me obedece como antes. Mas não me arrependo. Não sinto raiva. Quem escolheu viver só deve estar preparado para morrer só. Dias atrás, o gato ficou me observando até eu dormir, e quando acordei, ele tinha ido embora. Ele não vai voltar, porque sabe que eu também não poderei mais voltar para ele. Só meu gato me entende.