A MINHA CASA

A casa está vazia, as gavetas dos sentidos todas reviradas, invadidas sem pudor. Os meus sentimentos foram espalhados pelo chão, pisados, comidos, lambidos, esbofeteados e gozados, com a tranqüilidade de quem já conhecia a morada, com a calma e o estranho minúncio calculado de quem, por mais vil que pareça, possui plena consciência de que só o bem me faz. Como ladrão da noite assaltou-me a razão, abriu-me as janelas, os meus buracos, e deixou que em mim entrasse um vento frio de tão temido e incontrolável prazer. As cortinas todas do meu moralismo foram arrancadas e lançadas fora, porque com elas já não preciso mais me proteger. Os delicados quadros de parede carregam lembranças desconfiguradas, parece-me que o hoje não quer memórias, nem de ontem, nem para amanhã. Porque não me lembro, nunca, por mais que me esforce, o que exatamente me levou, da última vez.

Tudo está um caos. Tudo está escancarado para flores e espinhos, para fadas e lobos. Para o dia e para o noturno. Tudo está para você, só para você. Que me assalte! Que me invada! Que me roube a segurança... ainda que desde a primeira vez eu já lhe deixe as portas entreabertas, e já o espere. Porque eu sei que mesmo em guarda, você sempre me inaugura, por trás, pela frente, pelas janelas, e pelos portões, pelos porões, pelas vias rápidas e pelos becos. E você também sabe que sempre terá o que levar de mim, mesmo depois de sucessivos saques à minha alma e ao meu corpo. Em face ao suposto esgotamento das trocas, sua sabedoria e experiência o conduzirão pelos meus caminhos diversos, aos cômodos recônditos, onde subtrai-me, sorrateiramente, as jóias que me incrustam a vida: bebe da minha juventude, come as minhas energias ao desfalecimento, veste-se da minha castidade, coroa-se dos meus sonhos, furta-me o tempo dos vôos razantes... a minha alegria é toda sua, a minha dança, o meu canto é em tributo a nós. A casa, mesmo, esvazia-se. Esvazia-se de si, perde a cor, envelhece, sem que o brilho da ilusão permita que alguém constate. A não ser o que de mim, de fato é. Que por mais que essa desordem sempre me ache tudo, inclusive os pedaços de mim que desfolham a cada outono, daqui corre. De mim corro. Deixo a casa, os móveis, os cômodos todos, o jardim, a minha casca, a nossa moldura, a poeira dos meus versos. Tento me salvar, porque é chegada a hora, e eu sempre soube, em que ruirão todas as minhas estruturas, e em pó se transformará tudo o que foi nosso. Quando a casa totalmente nua e extraviada perecer de encanto, e lhe for decretada a falência dos desejos, de tantos desejos já sentidos e supridos. Mas corro em vão. No meio do caminho, caio, e em revés o meu fim me atrái.

De volta ao nosso lar, haverá quando nos separar, e disso não me cabe fugir. Ao seu lado, agora não só assaltada, como também seqüestrada, permaneço, assistindo em dor o que fomos através dos quadros que você escondeu durante tanto tempo. E grito dentro de mim: Se já não me assalta, se já não me invade, como continua a queimar-me?! Ao seu fim, também determino que seja o meu. Ateie-me o fogo da purificação. Toque-me o fogo que limpa, na tentativa de neutralizar o fogo da paixão com que você me incendiou. Purifique-me de tanta lascívia, de tantos caminhos que excluí em nome da minha luxúria, da minha boemia. Em nome do amor. Que nos encontre o perdão. Que morra em cinzas a minha carne, na esperança de que se expiem os meus pecados, e para mim ainda exista alguma redenção.