[A Poética das Águas: A Alma no Barco]

... E eis um longo poema andante, ou melhor, navegante, no qual estou sempre a trabalhar. Na verdade, o poema é ou um excerto, ou uma variante, ou autointertexto de “Porto Estrangeiro”, mas este é outro poema ...

I

Um porto,

tudo que eu queria

era um porto

para este meu barco

tão viajado!

II

Mas não...

Das minhas carnes exaustas

exige-se mais; muito mais!

Portanto, navegarei mais longe,

sem paradeiro... E um dia,

no exílio de um Porto Estrangeiro,

sonharei a volta ao meu país...

[Desterro, 11/11/1998]

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... E assim, a modo de quem procura

um porto em tormentosa noite escura,

desce este eu-meu-barco na correnteza

que verte desde Minas para o vasto Nada...

Sim, de Minas, dos confins do Alto Paranaíba,

zarpou este meu barco que navega nessas paragens.

feito uma alma penada, toca, mas sem jamais atracar,

nas margens de antigas cidades adormecidas.

Flutua na escuridão apenas quebrada

pelos reflexos de escassas luzes distantes

que lançam longas e brilhantes áscuas

no dorso manso e silencioso das águas escuras.

Como uma faca, a proa afronta, tenta e corta

a escuridão que se espessa na bruma cinzenta,

pairando sobre a superfície do insondável abismo

das águas profundas — sepulcro de tantos sonhos!

E segue o meu barco no sem-fim da noite...

numa súbita ânsia, a proa gira, tenta a margem,

mas não encontra guarida; retorna à correnteza

e some na noite levando minh’alma rio abaixo...

Sem o óbolo para dar ao sinistro Barqueiro,

essa minh’alma segue, só, ao desamparo,

jamais encontrará abrigo n’algum porto;

nem à profundeza do Inferno terá direito!

O rio murmura suas antigas epopeias:

dos volteios escuros das temíveis sucuris,

dos jaús-de-cama, tão criados e tão velhos

que chegam a ter pelos em sua lisa pele;

do cágado que o pescador rude e cruel,

como castigo por ele ter vindo ao anzol,

atou à raiz da gameleira para morrer

de fome e de sede, e apodrecer na areia;

das canoas viradas pelos horrendos negros d’água,

da poesia das marchas das boiadas pelas vazantes,

da bacia de alumínio com três velas acesas descendo

a correnteza em busca do cadáver de um afogado.

Histórias de rio acima que a minha inocência,

iluminada apenas pela lamparina a querosene,

ouvia, encantada, nas longas noites escuras

e chuvosas da velha Fazenda Barreirão.

Rolaram muitas águas desde as minhas origens —

estou agora em Itumbiara, às portas de Goiás;

sim, eu piso o solo do Velho Goiás do Anhanguera,

essa vastidão de mundos que só ao longe eu divisava,

enquanto conduzia uma boiada pelas mineiras

invernadas das vazantes do meu Rio Paranaíba.

distraído no compasso do trote lento do cavalo,

meus olhos sonhavam com aqueles mundos distantes...

Agora, dezenas de léguas rio abaixo, debruçado

sobre a murada da velha Ponte Affonso Penna,

este homem em que me tornei engendra futurações,

mas não se esquece das raízes que leva às costas...

E assim, de olhos cravados na escuridão sobre rio,

sou o menino que cavalgava pelas vazantes de rio acima;

mas neste instante, cá do alto da Ponte, sou o homem,

que derrama sobre o barco estas lágrimas irremissíveis.

E nas praias do Paranaíba, rio-espelho da cidade de Itumbiara,

olho céu azul profundo, e diviso, ao longe, as montanhas de Minas...

agora, o meu corpo jovem se enlanguesce sob o calor do sol goiano,

enquanto os meus olhos lambem a nudez das putas ribeirinhas...

Mas o rio é sem parar, segue como se nunca tivesse vindo,

oculta os seus mistérios e segue, não para nunca de ir;

e o rio sabe que um dia, no exílio de um Porto Estrangeiro,

eu, mineiro, chorarei por essas suas praias da margem goiana...

[Eu fico... mas a minh’alma segue ainda naquele barco]

[Penas do Desterro, 18 de novembro de 1998]