Acabei de chegar.

Cena 2

Acabei de chegar. Não sei por que, mas uma dor principia tão lentamente que me causa medo, já pensou, eu, logo eu, com medo! Arma de covardes. Logo eu que tenho nas veias o sangue de Aquiles, do guerreiro Hércules e os desejos do Ícaro. Vejo velas e não me interessa acendê-las, não sei por que também, acho que talvez por saber que você odeia vela e eu acendia, muitas vezes por saber que isso te incomodava e eu adora provocar reações em você, adorava ver sua cara de transtorno, cara irritada, fora do sério. Como será que você está nesse momento? Saí de casa tão bruscamente porque odeio despedidas e acho que, sempre no achismo, na mesma merda de achismo de sempre, logo eu, que sempre gostei de afirmar tudo, que me achava o centro da verdade absoluta, eu e meu ego centro, meu egocentrismo de achar que tudo está ou tudo é da altura do meu umbigo, eu que..., não consigo ter certeza de nada nem se o nada é realmente algo. Acabei de chegar e uma dor imensa agora insiste em me deixar arrependido e vasculhando as instantes desse espaço esquisito vejo que não têm os novos vinis, nossos porta-retratos e seu cheiro também não tem. Olho-me no espelho e parece que meus olhos não estão sozinhos, são os seus que vejo, que encontro e o gosto do seu beijo a lamber-me os dedos dos pés, me faz comprimido dentro de mim mesmo; o amasso do seu corpo comprimindo o meu corpo e nosso corpos tão diferentes e parecidos como se fossem um único corpo, além das juras e das frases de amor para um futuro duradouro... Acabei de chegar e nem as malas desfiz. Dói a carne, a carne em músculos e a vontade de pegar o telefone e ouvir sua voz mais uma vez me torna impotente. Onde será que você está neste momento? Onde? Pensa em mim? Ri? Chora? Escuta, escuta, escuta... Será que estou ficando maluco? Ouço sua voz e para mim tudo é tão real: a sensação é de diálogo, a sua saudação, o seu carinho por mim, a ligação marcada de todos os dias, na mesma hora e o tempo que gastávamos a trocar segredinhos nossos. Mas uma vez me olho no espelho e mais uma visão. Os olhos que me olham, que me vêem bem dentro de mim são os seus olhos. Ligo a torneira e contemplo a água que corre, lavo o rosto, lavo os olhos, torno a lavar e novamente uma língua que me roça a nuca, uma língua que me percorre o corpo querendo decifrar a cifra tatuada debaixo do meu braço esquerdo, bem no centro de minha axila, vibra em mim um vontade tremenda, vibra em mim a sua presença em dengo, solvendo toda a mágoa que depositamos um no outro. Você está aqui, está? Diz, diz logo de uma vez, não me deixa mais tão angustiado, você está aqui, não está? Responde e sai logo do anonimato,antes que eu me mate e me lance ao vale dos que já se foram, responde, aparece, materializa-se em metade faltante de mim, completá-me. Responde porra, responde. Eu te necessito e você a mim. Toca meu corpo como antes, como ninguém jamais, jamais tocou, chama-me de amor e deixa a música do nosso amor invadir esse espaço tão grande para nós dois. Deixa a música dizer o próximo passo, o compasso e eu aqui agarrado a toalha imaginando seu corpo nu e nós dois pelados a dançar por todos os cantos, todos os espaços como fizemos no dia em que nos conhecemos, lembra-se? Cruza seus dedos em meus dedos e conceda-me abraços de braços em laços dados... Eu te necessito e você distante parece não me querer. Diz para mim, diz o que posso fazer para sentir você de novo, diz o que posso fazer para que percebas o quanto necessito de você e você a mim. Para que machucar tanto nossas carnes se pertencemos um ao outro como tatuagem, porquê? Por que tem que ser assim? Por que teve quer ser assim? Por que está sendo ou deve ser assim? Estou febril, veja,estou febril, socorro, socorro, socorro, estou com febre e ninguém que me leve à cama, ninguém que cuide de mim, que me faça dengos. Estou com febre e chora por dentro minha alegria porque sem você tudo é vazio, totalmente vazio... Sinto frio e falta dos livros que aqueciam nossas almas. A gente debaixo dos cobertos e você a me contar velhas e belas histórias, de belas artes, de famosos artistas, de grandes homens. Só nós dois ali, naquele cantinho nosso e você como a própria palavra em movimento. Pensei em pedir uma pizza. Que você acha? Vestir nosso jean's surrados, sandálias e camisetas básicas, sermos, somente sermos seres comuns... Não, hoje nada de saladas, estamos muito felizes e isso nos pedi uma comemoração a italiana!!! Massa, vinho, vinho, massa, amassos comemoração e depois um belo passeio de bicicleta pela cidade, que acha, nada?... Nada é a existência da possibilidade de, lembra? Você me ensinou isso. O Nada!!! Cada vez que morre a esperança, nasce o nada como possibilidade de algo vir a existir. Como nada existia no princípio e tudo passou a existir... Estou pensando seriamente em procurar uma cartomante, ou quem sabe algum babalorixa que me jogue os búzios. E se me disserem o que na verdade não quero ouvir? E se disserem o que eu quero ouvir e não for o que na verdade é? Preciso pensar, reinventar meu espaço. Visitarei alguns sebos e gastarei o pouco de economias que tenho para deixar esse espaço parecido com o nosso espaço de amor. Comprarei obras de arte, cortinhas em cores fúnebres e assim, quando resolveres voltar, reocupar o espaço que é sempre será seu,... Espera, por favor, escuta-me ao menos esta vez. Não podemos deixar a vida passar sem estes últimos entendimentos. Espera caralho, espera... Respeito a sua dor e a sua certeza de que sou egoísta e mesquinho, aceito a minha culpa e toda provocação de ter quebrado um sentimento tão intenso que existia entre nós. Aceito tudo que me for colocado, tudo que me torna um asco, mas espera, estou pedindo, espera... Assumo a culpa máxima de ter sido medíocre e estúpido, de não ter tido a sensibilidade de perceber o sacrifício ou o que você teve que sacrificar está sempre ao meu lado... Sinto tudo isso amargamente e por tudo isso choro copiosamente. Choro como quem chora a própria morte. Cada lágrima que me escorre dos olhos tem efeito de ácido porque desce rasgando meu rosto e a dor me aprisiona porque a cada minuto percebo o grande erro que fiz. Parece exagero, mas não é. Essas coisas todas estão atingindo, além do meu emocional, o meu físico... O que mais me dói é não poder ter uma chance de provar o contrário, de mostrar que aprendemos as lições da vida, inclusive aquelas que marcam, que nos fere a carne. Como entender que num primeiro grande desentendimento todas as palavras de amor e sonhos futuros fossem se acabar assim... Como, então, compreender que tudo seria tão efêmero? Isso me dói!!! Se ao menos pudéssemos tentar, rever a situação, reverter a condição...Neste momento pego o março de velas e jogo janela a fora, ligo o celular, ligo para você e o sinal está desligado. Liga o celular, vai, precisamos conversar...