Que horas são?
Cena 1
Que horas são? Perdi a noção e nem vi o tempo passar. A vela está apagada, deixe assim, é desse jeito que gosto. Escuro, tudo no escuro: Meus olhos, minha boca, minhas mãos... Escuro, já disse: Meu cérebro, minha alma, meu corpo... Estado de plena inconsciência de caos. E assim posso me sentir na caverna, dentro da caverna com a finalidade de descobrir o mito ou os mitos que permeiam os sonhos mal vividos, os instantes não explicados, a caverna que tão bem confeccionamos para nós mesmos, as coraças, os silícios. Os mitos ou as mentiras que inventamos de inventar só para... Não gosto da fumaça da vela, não gosto de vê-la queimando, a certeza que chegará ao fim causa-me náuseas, vontade de por para fora tudo que tenho dentro de mim, aquilo que sou na verdade em essência, sem demasia, extra vazar. Vontade que dá e que passa, insegura, incerta, insustentável. A vontade dos grandes artistas, sábios da humanidade hipócrita, tantos legados e a sorte virada para o lado contrário, eu contrario...; poetas do mal do século que se entregavam a vida e morriam de amor, amor, horrendo amor que os fazia sangrar, arder em dor, tuberculosos de amor, pneumáticos de amor, poetas, veneráveis poetas... Vela, vela que vela a ausência de e eu querendo não pensar, não articular idéia, ficar em perpétua letargia e meditar ao som do grilo que canta e me estonteia. O grilo debaixo do colchão, atrás da porta, dentro do armário, o grilo do lado de fora, dentro do lado de dentro da caixa que está dentro da gaveta do criado mudo, o grilo mudo que não canta, o grilo, o grito do grilo grilado, lado a lado e o celular que não toca, não toca a valsa que tanto quis que tocasse nesse momento fúnebre e a gente sendo, a gente, sabe, a gente em pulsos atracados, pulsando sobre a dor um do outro, como torpes... A vela que enfeita a mesa, a vela que encaminha o defunto para, pára, pára momento insano, tonto momento de loucura, tormento e essa barata que tanto voa de um lado para outro, essa barata e nem sei quantas pílulas já tomei, nem sei, nada sei, nada e eu nadando em devaneio aleatoriamente sem saber discernir o autor da obra pendurada na parede lateral, e esse teto que não pára de rodar, está me deixando zonzo... Está bem, está bem, muita calma nesta hora , está bem já disse, já disse que está tudo bem, tudo muito bem, eu acendo, acendo a vela. Vela acesa, ambiente iluminado, fumaça, cheiro de fumaça, luz, vela, fumaça, vela luz e minha cabeça a mil. Rodando, rodando sem parar e eu me vendo rodando sem parar como não pára, não pára a correnteza do rio, o movimento da Terra, o coração vivo, meu pulso, minha respiração, agora, ofegante e hoje descobri que quem gira na verdade é a terra ao redor do sol, formando assim os movimentos de rotação e translação e eu transladado, transpassado de e viva Galileu e todas as putas sanas queimadas na fogueira da inquisição porque delas é a vitória da sinfonia do tempo soprado; como não pára a angústia de sentir-me só, de está sozinho mesmo cercado de tanta gente, gente curiosa, amiga, gente, todas as gentes e ver as pessoas ao meu redor e não sentir-me está ao lado de ninguém, ninguém... Sentir-se abandonado, abandonado... Já peguei o fósforo, é o único, não posso errar, minhas mãos trêmulas... Estou indo, estou indo, calma, não me empurra, puta merda vida de porrada. Estou indo acender a vela, estou indo vê-la queimar e pela janela vejo que a vida continuada lá fora uiva. A vida de tantas pessoas, sobreviventes dessa não vida que não nos cabe. Olhe, veja lá, lá em baixo atrás daquela lata de lixo, está vendo só, meu Deus!!! Um menino, inocente ser, veja, de arma na mão... Não, não menino, não faz isso!!! Olhe, está de arma na mão apontando aquele outro menino que brinca tão livre, veja, está apontando e vai atirar, não, menino, não pode, não faça, não... E o tédio me consome os ossos dos braços. A ação repetitiva, repetida tantas vezes, tantas vezes a mesma ação repetida e o movimento insistente, a condição que não existe ou não se quer explicada e estou febril, meu corpo dói inflamado, febril de saudade e ninguém para verificar minha pressão, pobre pressão, tonta pressão, torpe pressão que não me deixa racional e esse cheiro de chuva me faz pensar no cheiro de suas cuecas. Lembro-me do dia que nos conhecemos. Era noite e chovia, eu de carro, parado no meio da estrada, pneu furado e impossibilitado de ação porque não sabia agir; você caminhado livre, na chuva, caminhando, abraçando a liberdade que te fazia ser e nossos olhos encontrados e quando menos nos apercebemos as bocas necessitadas juntas comungavam um desejo latente, viril e do frio da chuva para o calor das cobertas, aqui, bem aqui neste apartamento; você escolheu a trilha sonora e nós dançamos coreografando o amor, aquele amor de corpo dado um ao outro em palavras sussurradas no ouvido. Eu sei que foi assim, eu me lembro de cada movimento de cada palavra de cada gesto até o momento e enquanto o sol não nascia e agente tantas vezes de amor vibrávamos, eu me lembro quando em seus braços você pediu as velas e que Da Vinci não me deixe mentir pelo olho da sua Gioconda que nos assistia... E eu odeio as velas, esse cheiro horrendo, causticante de cera derretida, chorada, odiosas velas que vezes parecem sorrir por cumprir uma ação determinada e nessas horas vejo o filósofo descer ralo do banheiro abaixo, com ele o mundo das idéias... Na verdade, não era esse o texto que tinha pensado, afinal de contas, o que conta é a experiência. A manhã mesmo não serei mais besta de perder tempo com choro. Sairei, sairei sim e gastarei todas nossas economias da tão planejada viagem a Itália; Procurarei um bom arquiteto e mudarei esse espaço, darei nova cara e terei nova cara também. Um novo papel de parede, mais claro, vivo, estampado. Nada mórbido. Venderei os quadros, deixarei os peixes do aquário morrerem de fome, a mingua, aos poucos e essas serão minhas pequenas lembranças. A cada coisa que for fazendo diferente, por menor que seja, será a forma encontrada de também matar você aos pouco de dentro de mim, de minha vida. Também terei nova rotina, novo designer. Pintarei meu cabelo, tinta e corte que combinem; demarcarei os traços do meu rosto e os olhos em cores abstratas para que os mais intimistas não possam percebem as personas que vivem por trás da cortina. Quebrarei todos os vinis e jogarei pela janela os pedaços de fotos. Os livros me aqueceram no próximo mês junino,farei fogueiras intelectuais para celebrar a data de cada santo. Queimarei junto, queimarei profundamente como se queima essa vela, maldita vela que me atormenta, me reinventa doentil. Direi a mim mesmo qual é na verdade a minha verdade e feito acrobata, nortearei o meu equilíbrio, sem ressentimentos e nossa história será mais uma história como, talvez velhas histórias contadas, inventadas, reinventadas. Espera, espera, antes de partir de vez... Não, deixa para lá. O que se faz com quebra não há conserto, deixa, deixa, deixa que eu queime sozinho a minha dor, por que insistir se não podemos mais fazer nada, nada, nada...