Farol

Da janela entreaberta do meu pensamento à deriva em mar revolto de recordações e porquês, vejo o céu noturno ponteado por infinitas estrelas, distantes e silentes, como a compartilhar comigo a dor destes dias...

De repente, meu olhar interior se volta para abaixo da linha do horizonte que divisa aquele céu de sonho impossível, onde, em meio à escuridão total, tremula uma pálida luz amarela vinda da janela de uma casinha de fazenda perdida na imensidão sem luz.

Qual fosse um farol a guiar a nau errante do meu pensamento, essa luz atravessa a retina dos meus olhos cansados, e, rompendo a barreira do possível, resgata dos confins da imaginação fragmentos de momentos que não cheguei a vivenciar. Vejo, então, uma menina sentada no chão de terra batida da casinha de fazenda onde passou boa parte de sua infância. Ela brinca alegremente com uma boneca de pano, como se fosse o mais caro dos brinquedos, e sonha os seus mais belos sonhos de criança. Posso ver os traços da felicidade pura impressos em seu gestual leve e na expressão de seu rosto parcialmente revelado pela luz tênue da lamparina que ilumina o singelo cômodo.

Eis que uma leve turbulência na rota do meu pensamento perturba tal momento de pura magia, cortando a cena para o ambiente frio de uma UTI de hospital, onde aquela menina, agora uma senhora de sessenta e nove anos, luta desesperadamente pela vida, que se mantém à base de drogas e presa a fios, tubos e sondas. Ela está sedada, para que não possa arrancar toda aquela parafernália de seu corpo já tão maltratado por tantas agulhas e bisturis, e também para que não sinta (será?!...) as dores da enfermidade que impiedosa e rapidamente a consome, bem como a angústia de estar ali, sozinha, privada da presença constante do calor de seus filhos e demais entes queridos.

Com o coração apertado, a memória traz de volta o instante no qual chego bem pertinho dela e, acariciando-lhe os cabelos (dos quais ela tanto gostava de cuidar), falo aos seus ouvidos: “mamãe, estou aqui, sou eu, seu filho que tanto a ama...”. Nesse momento, percebo uma contração em seu rosto, como se ela fosse chorar. Vejo então que ela me ouve, e não sei de onde tiro forças para desatar o nó na garganta e conter a emoção, prosseguindo: “seja forte, lute com todas as suas forças que você vai superar este momento difícil e vencer a doença, que não pode ser maior que sua vontade de viver; os médicos estão fazendo de tudo para que você possa ser curada, mas você tem de fazer a sua parte... lute, você vai conseguir, não se entregue, jamais... estou aqui, e permanecerei a seu lado...”.

Passa o tempo, pouco tempo... E, numa daquelas madrugadas insones que quero esquecer, toca o telefone. Alguém do hospital diz, em voz desprovida de qualquer emoção, mas em tom que dispensa mais palavras: “venham agora, o médico de plantão da UTI os espera...”.

Como apagar da mente a cena que se segue?!... Aquela linda menina, cheia de vida e de sonhos, agora uma bela senhora, minha mãe tão querida, ali, inerte, num corpo sem vida...

Fico com as recordações, tentando me desvencilhar dos porquês. Resta-me, dela, o brilho daquela luz – farol intenso em minha vida – que a iluminava quando, sentada naquele chão de terra batida de casinha simples de fazenda, brincava com sua boneca de pano, e sonhava...

Do lado de fora da janela por onde ainda a vejo brincar, cintilam as mesmas estrelas que agora ponteiam o céu noturno por onde segue meu pensamento a viajar...

(para você, mamãe, com carinho e saudade)