Assim Falou o Arquiteto
Parecia zangado.
E muito mais agitado do que o normal.
Não mostrou sua coleção de baratas de borracha e outros bichinhos nojentos que usa para brincar com os visitantes.
Não me fez qualquer surpresa.
Não riu. Não jogou nenhum sapo em cima de mim.
Nem uma piada sequer. Nem uma gostosa gargalhada.
Escrutinou as imagens que levara, envolto em um gélido silêncio.
Depois me examinou com minúcia e sobriedade inquietantes.
Respondeu à algumas perguntas com uma certa irritação,
enquanto seus dedos pressionavam meu corpo em pontos que
causavam muita dor. Fiz tudo para obter dele ao menos um sorriso.
Não consegui, já sentindo o forte abraço do vazio.
Como sua franqueza habitual, revelou aquilo que eu já
supunha. E confesso que tremi.
Depois voltamos à mesa, e antes que ele se pronunciasse,
afastei a papelada que escondia imagens de seus outros
projetos. E disse rápidamente :
"Muito bem, vamos logo escolher as peças para a nova estrutura".
Ele fez uma série de considerações e recomendações que me
gelaram o sangue. Até a lágrima que nascia congelou.
Uma pequeno ponto de vidro entre a íris e o cílio inferior.
Revi mentalmente a última batalha. E nova condenação foi proclamada, junto com algumas instruções. Me indicou o batalhão que preciso recrutar. E relembrou velhas táticas que gostaria de esquecer ...
Não é hora para o Arquiteto atuar, pois só o poderá fazer
no último minuto. À beira do desabamento do prédio inteiro.
Tentei argumentar, mas foi impossível.
Nova batalha me espera, e não há como evitá-la.
Nos despedimos.
O Arquiteto sempre me dava um beijo na testa nesse momento.
Dessa vez prendeu minhas mãos nas suas e as beijou diversas
vezes. Longa e tristemente, como um cavalheiro pesaroso. Assim como quem pede humildemente por perdão. Pelo único fato de não poder fazer nada agora. Por um erro que não cometeu. É mesmo um homem bom. Mais do que isso, até. Nem pertence mais à categoria humana.
Observei por um instante aquela alma iluminada, e me pareceu
estar mais devastada que a minha. Vi suas luzes algemadas,
o desbotar dos matizes brilhantes retidos na opacidade da lógica que requeria a inação. Doía ao Anjo da Salvação obrigar-se a representar aquele da Anunciação.
Depois me olhou com uma tentativa de sorriso, que resultou em um esgar estranho. Então o Arquiteto falou :
"É mais sério e delicado dessa vez. Cuide-se bem, por favor. Volte sempre para dar notícias. E pelo amor de Deus, não me apareça aqui sem forças para andar..."
Cheguei em casa sem forças para falar.
Ou para ouvir. Ou para rezar.
Isso foi ontem.
Até agora estou muda.
Ando cansada das lutas.
E penso muito no meu pai...
Claudia Gadini
09.03.06