O Encontro Fortuito

Henrique precisava de algumas fivelas e arreios para sua coudelaria. Analu já não demonstrava medo dos cavalos, mas precisava montar com segurança. O Sr. Miguel Salvino de Freitas, responsável por esse item obrigatório, para quem monta, já alertara sobre esse detalhe simples e de importância incontestável.

Após o café, frugal, como fazia questão de ser, o autodidata resolveu, pessoalmente, comprar o material solicitado por seu capataz.

Analu irradiava felicidade. Na noite anterior Henrique lhe proporcionara uma demorada e lúdica massagem nos pés superdelicados. Naquele ensolarado dia de setembro de 2008, às 10h17min, Henrique se despediu de Analu com um fraterno beijo na bochecha rosada, morena, e se dirigiu, em seu Hyundai Veracruz, ao centro da cidade.

Hyundai Veracruz? Trata-se de um "crossover" de luxo, sem ambições de se aventurar por trilhas "off-road" pesadas. A melhor definição desse avanço tecnológico móvel é: Moderno, familiar, confortável, belo, seguro e elegante.

Isso não tinha a menor importância para o homem simples e conservador, ademais, os profetas dizem que a propaganda morreu. Algo nos diz que na história da humanidade, nenhum profeta ficou famoso por fazer previsões otimistas. O que sempre valorizou o currículo de um mensageiro do futuro foi a sua capacidade de prever guerras, pestes, catástrofes e o nascimento de anticristos.

Os profetas contemporâneos não fogem à regra. Por isso Henrique não gostava de profecias e propagandas. Sem demonstrar excessos ou empáfia própria dos vencedores ele simplesmente dizia: “Meu Vera Cruz é bom e me satisfaz plenamente”.

Henrique não era um profeta. Isso não lhe interessava. De uma coisa ele tinha certeza: Todo marido, namorado ou amante deveria ter barba de algodão-doce, capa com superpoderes e um borrifador de elogios para nos dias de ressaca e/ou incompetência pessoal, borrifar aos ouvidos das suas (deles) mulheres suas melhores poesias e em seus pescoços ver, sentir e se comprazer com os arrepios dos desejos, principalmente nas que tivessem o biótipo de sua ex-aluna e agora muito mais querida do que dantes Analu.

Ocorre, entretanto, que Analu não precisava de elogios. Ela se garantia por ser uma mulher excepcional não apenas por ser extremamente feminina, mas, sobretudo por compreender e saber explorar com todo o seu corpo, principalmente boca e mãos toda a anatomia masculina.

Antes Henrique pensava que uma mulher doce, linda e maravilhosa precisava também ser culta para lhe atrair. Ledo engano. Divina. Essa era a melhor definição daquela que soubera cativar o homem solitário que se divertia resolvendo equações diferenciais, de cor, enquanto esperava o sinal abrir ou um pedestre atravessar por sobre sua faixa preferencial.

A excepcionalidade da menina-mulher Analu residia no conhecimento profundo e pragmático, também, da própria sensualidade.Trazendo à superfície e cultivando um sem-número de qualidades adormecidas ela subdividia sua sensualidade, com garbo e elegância, em: discrição, higiene, elevada sensibilidade, apetite, desejo de se dar e habilidade sexual indiscutível.

Ao vê-la quando estava com uma forte crise de conjuntivite, antes de perguntar se ela estava chorando, teve ímpetos de abraçá-la e dizer: "estou à sua disposição, ouviu?". Às vezes, Henrique transmitia uma aura de autoridade, uma insolência mesclada com soberba, assim como uma manifestação ou atitude de suposta superioridade, mas diante de quem possuia uma candura e luz angelical ele se curvava.

Dobrar os joelhos diante de uma mulher não é ser submisso. O autodidata acreditava ser uma merecida reverência ao amor ou um sentimento profundamente respeitoso e temeroso pelas coisas sagradas. Mulher é um ser sagrado que está acima das necessidades e dos valores terrenos. Por isso mesmo não se pode infringir ou desrespeitar, mas sim venerar com a docilidade de que se é capaz.

Após estacionar seu carro em uma “Zona Azul”, na Rua Maciel Pinheiro, próximo das lojas Marisa, o autodidata se dirigiu à Praça da Bandeira. Atraído por uma pequena multidão que se aglomerava nas proximidades dos Correios, em frente à banca de revistas de um senhor que posteriormente veio a saber chamar-se Orlando, ele se aproximou de um grupo de pessoas jovens e alegres.

Na concentração de gente viu uma garota à semelhança de Analu. Impossível! Ele a deixara na Casa dos sonhos coloridos, sito a uma distância de seis quilômetros, próximo da cidade de Lagoa Seca. Como poderia estar naquele local e antes de ele chegar ao centro de Campina Grande?

Segurando uma bandeira vermelha, fazendo propaganda de um candidato à prefeitura da cidade, a jovem morena de cabelos longos e brilhantes vestia uma calça jeans cinza, uma blusa rosa, tênis, bolsa caramelo. Usava brincos enormes em forma de argolas. Henrique se aproximou e cauteloso perguntou:

- Ocorrerá alguma reunião política por aqui?

A moça olhou e bateu os olhos várias vezes. Isso era um cacoete? Um gesto ensaiado? Parecia dizer: "Eu sou aquela mulher que caminha com os pés no chão, os olhos nas estrelas e as mãos no coração". Dirigiu-lhe um sorriso iluminado e inclinando a cabeça para um dos lados, afastando um pouco a franja dos olhos, disse entredentes:

- Não. Não. Haverá um atendimento de graça para todos. Quem quiser poderá se vacinar, medir a pressão, conferir o grupo sangüíneo, etc.

Henrique percebeu que a moça usava um amuleto no pescoço delicado. Tinha a forma de uma pequena ferradura dourada.

- Você gosta de cavalos? Gostei do amuleto em forma de ferradura.

- Adoro cavalos. Aprendi a montar e sei tudo sobre animais domésticos: cachorros, gatos, bodes, porcos, galinhas, coelhos, selas, cavalos. Essa medalha eu ganhei de um campeão de rodeios.

A imagem de uma mulher libidinosa ou sexualmente apreciável surgiu na mente do autodidata com a força de uma carga elétrica capaz de alterar o comportamento, o raciocínio, a lucidez. Num átimo a mente do homem formou a visão de uma amazona nua, morena, como uma divindade aérea, vaporosa, adquirindo um ar esvoçante sobre o dorso de Janína (esse era o nome de sua potranca preferida).

Sacudiu a cabeça como se pudesse espantar a visão binocular, isto é, obtida com a combinação de duas figuras que representam imagens tomadas de pontos diferentes, representadas na figura única em cores antagônicas. Analu e aquela moça eram as majestosas figuras diametrais que se fundiam em um recanto especial do cérebro de Henrique.

- Mesmo? Que sorte a minha. Preciso comprar uma boa sela para uma égua de estimação e queria conversar com uma pessoa abalizada sobre o assunto. Você sabe onde posso comprar uma boa sela aqui por perto?

A moça tinha as mãos delicadas e seu rosto parecia ser de uma pessoa de posses, mas se estava trabalhando para políticos segurando uma bandeira... como acreditar ser uma bem aquinhoada criatura com trajes tão simples e modestos?

Pensou nele mesmo e se arrependeu desse pensamento. Ele era simplório em demasia e aparentava ser pobre, quase sempre andava malvestido quando na verdade não era um miserável em potencial.

- Certa vez meu vovô comprou uma potranca e me deu de presente. Naquela ocasião, com a voz emocionada, porém segura, confiável e pausada ele me disse que uma boa sela tem as seguintes características:

“Seus suadouros se apóiam uniformemente na musculatura dorsal do cavalo; os estribos são fixados numa posição que possibilita a boa colocação de perna do cavaleiro, na vertical como se ele estivesse de pé com as pernas ligeiramente flexionadas; tem os loros feitos de uma tira de couro forte e inteiriça, sem ser emendada por costuras; é feita de couro resistente a estiramento excessivo ou desgaste precoce; tem as ferragens confeccionadas em metal inoxidável; suas barrigueiras ou cilhas tem, espessuras e acabamento que evita assaduras no cavalo.

Minha netinha Luana precisa saber que quando escolhemos uma sela, o conforto do cavalo tem que ser nosso primeiro critério, pois afinal é ele que está "carregando o peso", e seu desempenho jamais será o esperado quando a sela lhe provoca desconforto. A sela deve se apoiar na musculatura lateral de ambos os lados do dorso do cavalo, deixando a coluna vertebral (a parte óssea) inteiramente livre de contato e de pressão, mesmo quando o cavalo se encontra acomodado nela”.

- Seu nome é Luana? – Henrique perguntou quase gritando e arqueando as sobrancelhas grossas e visivelmente impressionado com os conhecimentos demonstrados pela jovem que segurava a bandeira como um cetro valioso. O drapejar da bandeira sacudia, também, auxiliando a brisa traquina, parte dos cabelos bem cuidados de Luana.

- É. Por quê? Não acha bonito esse nome?

- Gosto até demais. É que a futura dona da sela que desejo comprar chama-se Analu. Ela tem uma potranca também. - Henrique não quis dizer que Analu era a proprietária de um haras na casa dos sonhos coloridos -. Analu é seu nome ao contrário Luana! Não é muita coincidência? A propósito meu nome é Henrique. Muito prazer. Onde poderei comprar a bendita sela? - Esfregou as mãos como se estivesse com frio. Sentia a presença e cheiro agradabilíssimo de Analu.

- Ah! Muito prazer. Vá até a rodoviária velha. Perto da feirinha de frutas e procure nas imediações a Casa dos Fazendeiros. Fica na Peregrino de Carvalho. Lá você será bem atendido e saberá um pouco sobre minha história. Diga que foi Luana que recomendou a loja deles. Certamente terá um bom desconto.

Observação: em um futuro texto Henrique narrará a história de Luana.

- Igual a Analu Henrique observou que Luana tinha três pequenos sinais escuros quase imperceptíveis no lado esquerdo do pescoço, subindo em direção a orelha; as orelhas furadas com os brincos de argolas grandes; os cabelos presos como um rabo de cavalo e sobrancelhas divinamente bem-feitas. Não usava batom e tampouco qualquer outro cosmético. Não se tratava apenas de uma semelhança física e nos trejeitos despojados. Luana era uma cópia perfeita de Analu.

Luana era uma sósia de sua ex-aluna que aspergia essência de jasmim em sua volta e porejava um suave perfume de rosas exóticas. Naquele dia de sol tudo estava diferente. Era como se algo especial estivesse para acontecer. O ar abafado dava lugar a uma brisa fresca e primaveril. Os pombos que habitavam a praça arrulhavam contentes.

Nesse encontro fortuito Henrique ficou feliz e acreditou no que um dia leu em sua rede, armada no alpendre da casa dos sonhos coloridos, vendo, ao longe, Hulk e Jade saltitando em perseguição aos pássaros que bicavam a terra à procura de sementes frescas e orvalhadas:

“A Primavera (Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366)”

“A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor”.

Henrique comprazia -se em exercer a caridade: Compraz -se com a felicidade alheia. Ele não compraria apenas arreios e fivelas para a sua coudelaria. Analu merecia uma boa e bonita sela. O autodidata estava feliz. Muito feliz após o encontro fortuito com a menina-moça Luana.