CARTA A... V

«...todos os caminhos que vejo e que já vi um dia levavam e

levam inexoravelmente ao absurdo. O mundo é absurdo; a vida é

absurda, e qualquer tentativa de fuga de tudo isso é, ela mesma,

absurda também.»

Gustavo Gollo

em comentário a CARTA A UM AMIGO RECANTISTA

Sabes, caro, quantos ventos demorados arrasaram o meu

corpo por dentro e por fora? Ainda os sinto rebulir, encerrados no

interior de abismo, a zombarem, infinitos, nas entranhas.

Tudo é absurdo, sim. Mesmo pensar isso também o é. Não

há saída para o mundo. Entendo isso mais quando deixo a morada

familiar, mãe recuperada do luto, irmão ausente, outro irmão

presente mas ausente. Deixo-a e cubro-me de tempo e de

distância, o motor a lavrar os caminhos de asfalto, volante a girar

através dos campos, relógio impreciso, demasiado grande, a

rodopiar no pulso estreito, como bússola que marca o rumo face

a nenhures.

Tudo é tão absurdo que até os poemas me dizem nada.

Ou eu não os entendo e misturo os conceitos e as imagens, sem

orientação. Confundo os significados, mal interpreto as metáforas,

não desfruto dos jogos de palavras. O dicionário, insípido, surdo,

virou caixa de sapatos. A conversa varou no silêncio, os falares

não percorrem a areia nem há barcos no poente a traçar rumos de

estrelas na superfície das águas.

E todo esse absurdo faz-se turbilhão de espirais e vágados.

Estonteando o presente com centos de moles queixas passadas e

futuras, desencontros, incoerências, olhares incertos, desejos

eivados, vias impedidas e sangue a jorrar pelos poros todos da

alma, absurda também como todo o resto. Como se fosse

impossível parar tudo, parar

PARAR TUDO

e reconhecermos os

membros, mesmo os mutilados, tactear os cabelos, recompor as

saias em digno gesto e tratar de reconstruir a vida com um pouco

mais de saber fazer da nossa parte...