DISCURSO DO MANACÁ FLORIDO
Uma plantinha insignificante. Certa vez, numa reforma da casa, foi preciso replantá-la na lateral a fim de agregar uma varanda frontal. Lá foi aquela planta indistinta junto a outras destacáveis, apenas devido a escrúpulos sustentados por um respeito tenaz ao reino vegetal.
Na verdade, havia também um detalhe na surdina. Numa primavera, há exatos dez anos, um jardineiro infiel passou por ali e muitas das plantas viventes no jardim são legado dele. É provável que, como ele se espalha no mundo tal qual cigano insaciável a transfugar sementes e estacas ao léu – semeadura de passarinho descrente dos céus e dos latidos de corações abandonados -, haja permanecido algum sublime afeto, em resquícios vegetais, na memória enraizada de mãe da amante, enterrada sob as pás inclementes do tempo a rescender de seu corpo pulsante um perfume indistinto, tal qual o manacá modesto, impotente.
Faz poucos dias, uma primeira flor foi percebida no manacá desde sempre discreto, agora solene e elegante a exibir impávido o sinal singular de sua maturidade. Era miudinha e branca e seu perfume rescendia sons de bocejos em despertar displicente. Logo em seguida uma segunda, em tom avioletado, emitia um som mais agudo de perfume menos solícito. E o manacá gerou profusão de flores e, generoso, revelou-se espetaculoso a entoar o cântico polifônico de sua floração precipitada em cascatas de cândido lillás.
Impossível seguir dedicando ao manacá uma atenção caritativa e parca. Agora estava ele amadurecido e exigia contemplação deleitosa, uma mirada fogosa em expectativa ouvinte, alerta à diversidade de acordes do manacá maestro de flores em ditirambos ou picos agudos, graves sisudos e acréscimos cristalinos, ululantes, sussurantes em sutilezas cromáticas ... extáticas.
Êxtase consumado, o manacá mimoso envaidecia o olhar ouvinte instigado a inquirir do percurso insólito da metamorfose inédita. Como te ornastes audívelmente singelo? "A primavera renovou meu ânimo preguiçoso. Estava eu a maturar reflexões sobre a eternidade quando a primavera sacudiu as camadas profundas de minha consciência fotossintética a rebrotar amores. Qual presente, o passado floresceu às extremidades de minhas manifestações tardias. E se conformou no agora único e pródigo. E proliferei pêndulos a transcorrer as esferas do tempo". A amante verteu o panorama reminiscente a despetalar o jardineiro retido em reverência ao manacá frondoso que, num espaço de dez anos, presenteia, ausente, a dádiva do manacá fabuloso, poeta e discursivo, filósofo e ostentoso.
Vens a quê tu, manacá indiscreto?, a reacender cinzas? Acaso florescerás asas de fênix? Ademais te revelas pretensioso... Em teus vôos impertinentes, que sabes de perdas doridas e desamores? "Que destoam os uivos dos ventos, teimam em permanecer e perfumar de sombras sonhos desbotados. Raios rastejam alumbramentos aterrantes para o testemunho indesejado de acontecimentos consumados. Beijos em pétalas orvalhadas são fugazes e, no entanto, permanecem qual rocha inerte a condensar noções temivelmente esparsas. Flores arrancam os minerais indiferentes de seu sono letárgico e os ordenam em pétalas vigilantemente delicadas."
Se tão filósofo já és mimoso e qual a fútil brevidade de algumas pétalas indigentes a estremecer na inevitável iminência de fenecer abocanhadas pela terra insaciável? Poeta histriônico, quem pode fazer ressurgir do ventre mineral pétalas frágeis de amores idos? "A incansável revisvescência das primaveras mantém o pulso da seiva cálida nas entranhas vegetais. As flores idas revolvem a terra e cristalizam brotos e pétalas em refração suavemente assombrosa nos sonos e na morte."
Torna a teu silêncio, manacá espantoso! Que ousadia herética te orienta a tocar os mistérios de um sangue empedrado e triste? Deixa gelar ansioso o cadáver do passado diluído pelo avanço implacável dos anos imemoriais. O manacá distinto arrefeceu abalado e logo tilintou inextinto. "É só a brisa primaveril que de tão leve arremessou o eco aterrador e vivo que pulsa em tuas veias. E ainda que teimes em fenecer ardente pétalas desmemoriadas de teu espanto, o resgate primaveril alentará, para todo o sempre, o renovado canto perfumado dos beijos de um jardineiro cruelmente indiferente."
E distraído o manacá perfumou a replicação de seu cântico infindo, cíclico, implacável. A impotência do êxtase afogou em ondas o mar de saudade que rugiu ao longe. O jardim amanheceu esplêndido em seu pleno estoicismo vegetal. A primavera rebrilhou solar a lunática nostalgia suplantada. E o plantio semeou de estrelas o chão devorador de amores, arranhado incansavelmente por mãos suplicantes de enternecimentos minerais.