Sede
Diz o ditado que jamais devemos ir com muita sede ao pote. Por quê? Será que em nossa extrema afobação derramaríamos toda a água contida? Ou será que a beberíamos em tal gana, que seria como se ela jamais houvesse existido?
Imagino que este seja um dos meus maiores erros, do qual não consigo me livrar. Minha sede é intensa e minha alma não conhece saciedade. Meu apetite é voraz, um desejo feroz e sem limites.
Na verdade, um pote não me basta. Quero mesmo é uma fonte enorme para saciar essa sede mortal invertida. Invertida, pois não bebo como quem morre de sede, mas como quem vive.
Com o mesmo desespero primordial do bebê, que bebe o leite materno pela primeira vez: quente; diretamente do peito. Esse é o gosto primeiro que se tem na vida, auto-afirmativo que enfim estamos realmente vivos. Respirar e sentir os pulsos monótonos do coração, não basta. É preciso a certeza palpável. É preciso preencher qualquer vazio. Na alma. No estômago. Isso sim é coisa de gente viva.
O que quer que tenha nos criado, criou a boca como porta para quase tudo. Para entrar e sair. Beber e vomitar. Pela boca entra o alimento que sustenta a vida. Na boca começam as mais intensas sensações: é nela que bebemos o amor, a luxúria ou simplesmente companhia. Sendo assim, essa deve ser a função de um beijo: beber um pouco dos outros para sermos mais completos, ou menos vazios, como preferir. E é pela boca que expulsamos toda a raiva que macula a alma ou encantamos ouvidos com belas palavras de amor. Amor que é amigo. Amor que é amante. Amor que consola. Amor que ama. O amor que às vezes confunde. O amor que também machuca. Parece até um jogo louco. Uma loucura que tortura. Felicidade. Tristeza. Felicidade. Tristeza. A sede respira assim. É o sabor que docemente envenena, numa tal magnificência, capaz de escravizar pelo fascínio até mesmo a mais singela criatura.
Suponho que este seja o fino tecido de que é feita a vida, fechando o ciclo que nos faz buscar eternamente, nada além, daquilo que já temos pelo simples fato de existirmos: a sede de amar. Estupidez desgastante esta do sentido de viver. Sequer podemos generalizar, cada um de nós busca obsessivamente por uma face diferente da mesma coisa. Todos buscam saciar a sua sede , o que a torna o seu aniquilador caro e escasso.
Se alguém domina o mundo, deve ser um pouco sádico para assistir a todo esse caos e não ajudar com seus poderes ilimitados. Ou será que ele julga ser nossa a função de aprendermos sozinhos tudo aquilo que jamais nos foi ensinado? Será que realmente existe uma lição, que não fazemos idéia, mas devemos aprender?
Um ferreiro não pode fabricar tijolos, e nem um fotógrafo fazer uma cirurgia. É preciso exigir de cada um o que se pode dar, ou então ensinar-lhe aquilo que se espera. Não é justo punir um cachorro que não pode miar ou um humano que não consegue viver. É cruel demais dar apenas a sede, e nunca algo para se beber.
Carregar um fardo e não fazer idéia do que se trata. Um dia ainda me enfureço e descubro o que é. Quebrarei as regras! Será que serei punido? Já fui. Já sou. É segredo, mas bisbilhotei a carga e não gostei do que vi. É tão pesada que doem os meus pés e obriga-me a manter a cabeça baixa. Assim posso observar o caminho. Também não é agradável, geralmente é seco. Muito seco. Mas às vezes também tem água, então eu esqueço do trajeto por alguns instantes e molho meus pés doídos. Mais do que isso, banho-me inteiro. Bebo-a inteira! Minha sede atrapalha novamente e o caminho volta a ser desértico.
Não consigo me controlar! Bebo com meu corpo inteiro, numa devassidão que esgota! Cada partícula de mim clama por vida. Não me conformo em simplesmente existir. Preciso viver. Preciso sentir. Viver é sentir, mas deveria sentir-se algo bom. Queria tanto acreditar que a gente não morre em vão! A idéia de um paraíso para depois me apavora. Por que depois? E da vida, o que fazemos?
Melhor reformular: Queria tanto acreditar que a gente não vive em vão... É isso. O segredo é não viver em vão. Morrer não importa, pois mesmo que a plenitude existisse só depois da morte, então depois da morte seria a vida.
Porém não posso esperar. Nem quero... Recuso-me! Vou viver agora! Ao menos vou tentar. Vou correr! Pular! Gritar feito um doido!
Fugir, com a mesma fúria de um bárbaro, em busca de um caminho diferente. O meu caminho. Rumo a um oceano tão infinito que seja capaz de suportar a minha imensa sede.