ENCANTAMENTO

E como cousa d'encantamento

fum polo ar e vim polo vento

Canção popular galega

Enfrente dos olhos, cabeça em ângulo reto, narinas excitadas

de recendo, a fumaça lambe o líquido quente na xícara. Uma infusão.

Não é uma infusão qualquer, mas poção mágica. Quem dela

bebe atravessa cidades num sopro, voa sobre as ruas vencendo

semáforos, automóveis, transeuntes, empregados da estação.

Conta contos. Conversa com trasnos. Apanha comboios.

Assiste a reuniões clandestinas. Programa contributos futuros.

Repara nas ausências presentes. Vaticina estranhos sucessos.

Desvenda mentiras pacatas. Resolve antigos rancores. Abre

caminhos no ar. É vento que entra na terra. Desde o mar.

Na bandeja, o calor castanho de duas chávenas. Bolachas.

Colheres. Uma conversa de açúcar entravada na esquadra do salão.

Momentos depois, duas estrelas a dispararem pelas ruas

cadentes, a deixarem estuporado o edifício do Parlamento: chuva de

futuros possíveis que conseguem, sim, chegar a tempo.