Eu não enxergo bem...

Eu não enxergo bem, definitivamente.

Eu tento. Abro bem os olhos e forço a vista, franzindo o cenho, enrugando a fronte daquele jeito que deixa marcas. Ainda assim, não consigo sustentar o olhar por muito tempo. Me dói a cabeça, uma dor que vai além do físico, uma dor que barra a moral e que transcende o óbvio. É quase um choque. A pálpebra fica cansada, ela pesa um absurdo, então eu pisco várias vezes procurando o foco, mas dói demais.

Posso cobrir os olhos com a mão e protege-los do sol, mas não adianta. Eu não enxergo bem. Não sei se é a iluminação. Às vezes tem sombras de mais, e tudo fica assim, meio encoberto. Meio secreto. Mas quando eu procuro a luz, sem nem sempre encontrar, tudo fica muito claro e perturbador. Todo aquele brilho atrapalha. Tanto contraste! E tem todas aquelas coisas que eu não quero ver.

Eu não enxergo bem. Pode ser a distância entre eu e o objeto do foco. Se ele tá muito perto eu não enxergo o todo, tem todo aquele charme do conjunto que me falta, a forma, a silhueta, o tamanho. Então eu afasto, e os detalhes é que desaparecem. Eu perco a beleza da pequenez, da sombrinha, do maneio. Perco a textura, o cheiro, o relevo. De todo o jeito, as coisas parecem meio borradas, como se tivesse algo errado.

Vou além. Tem vezes que eu não enxergo bem! Bem que eu tento. Juro! Eu olho com cuidado, várias vezes, mas eu nunca consigo olhar por todos os lados ao mesmo tempo. Quando olho de frente, me falta o perfil. Quando olho de cima, perco a perspectiva. Se eu giro em torno é o centro que se perde, e eu queria ver direito, de todos os ângulos pra conseguir entender.

Diz que a formação da imagem é associada com a palavra, que eu sei o que é o que porque tem um nome. Eu acho que não. Eu sei os nomes todos. Cadeira. Cama. Mulher. Ar. Olha ai, ar! Eu sei o nome, e não consigo ver! Porque será?

Diz que nem tudo é igual pra todo mundo, por causa disso. Que a cadeira cada um vê de um jeito, mas que todo mundo sabe que é cadeira. Eu queria é saber como é que as outras pessoas me vêem, eu sei que eu não me enxergo muito bem. Sabe como é, nós somos complexos. Nós temos um monte de palavras pra formar uma imagem só. Às vezes, vai saber, as palavras que eu uso pra me ver são diferentes das dos outros.

Diz que tem coisas que nem todo mundo enxerga. Eu não enxergo cheiro, por exemplo, mas tem quem veja! Eu também não consigo enxergar sentimento, amor, verdade, mentira, essas coisas que todo mundo que vê normal consegue. Eu não vejo fantasma, passado e futuro, não vejo estrada e destino, essas coisas que todo mundo que não é lá muito normal consegue. Deve ter algo errado comigo.

Tem toda a situação da pupila. Quase certeza que o problema ta na pupila. Diz que a quantidade de realidade que você enxerga depende da dilatação da pupila. Diz que tem outras coisas que também influenciam a dilatação da pupila. E que o medo e o interesse são duas delas. Mas o que acontece quando temos medo de mais? E quando temos interesse de menos? Ou vice e versa? Será que não atrapalha?

Sei lá.

Eu não enxergo bem. Mesmo.