dias iguais

Velas acesas. Luz cortada. Na casa. No armário central de força do prédio. O telefone não toca pra ninguém dizer nada. Datada as horas de tudo estar às escuras. Futura civilização: escuridão e solidão. Sons e luzes nos vizinhos. E é tudo tão estranho sem barulho e claridade. Não se vê televisão. Não se ouve qualquer cd no som. Tom de preto e cinza na parede. Um amarelo de vela. Luz de velas. Cela a ligação com a luz. Terá que dormi mais cedo, alguém. Assoprar todas as velas. Da sala, da cozinha, do quarto. Pacto contra qualquer incêndio. Nem ler se tentará nesta noite. À luz de velas não se gosta muito. D’um susto se levanta da cama com o telefone a tocar:

Não era ninguém. Caiu a ligação.

Mas era alguém. Quem?

Uma pergunta que vai ficar sem resposta toda a noite. Ou toda a vida.

E se contesta ficar às escuras em consequência de uma conta não paga. R$ 10,48. Dez reais e quarenta e oito centavos pagam duas noites como esta?

O que resta agora senão dormir. Acordar com a luz do sol. Luz entre os cômodos. E não se vai saber quem ligou: se conclui. E ninguém ligou pra dizer nada. E parece que as coisas se ajudam: escuridão por solidão. Talvez hoje que a luz for religada — e queimarem as poucas lâmpadas que restam. E nós ficarmos à mercê de nós mesmos. Para que reclamar uma ou duas lâmpadas queimadas? Não vai dar em nada — o telefone toque. Alguém fale “oi, como está?” As coisas se ajudam. Mudam. Qualquer dia não é o mesmo dia. E alguém deva estar no escuro agora como estara. Mas talvez os dias sejam, mesmo, iguais.

Quaresma
Enviado por Quaresma em 23/02/2006
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