quinto sono

Hoje acordei. Não me levantei. Fiquei na cama.

Pode parecer arrogante, mas sou um homem bom, inteligente, bem-humorado, bom de cama e também decidido.

Cheio de defeitos como todos os outros.

E percebi esta noite algo que machuca o peito.

E assim não me levantei. Fiquei por alguns instantes com os olhos semiabertos. Sonolentos. Não estava esperto. De certo era eu quem estava ali. Despreparado para tal falência. Existência de um sentimento inojável. Sentado e sob meu torto dilema. Em plena decadência estável. Estarão descalços os pés, agora?

Chora em mim um dos olhos. E a lágrima escorre pelos poros da pele. Fere a derme. Insere em mim um pouco de lágrima. Como algo que vai e retorna.

A porta está trancada. Composta em seu lugar por tantas outras coisas. E escurece o quarto de dormir-acordado. O palco de minha encenação. Que distorce a razão pela qual estou pensando no que me acontecera. Teia de tantas formas! Corta em mim toda explicação.

E num lampejo, nem sei se dormi. Se preguei os olhos avermelhados. Se encharcados permaneceram toda a noite. Se açoite é o atrito das lágrimas na pele quente. E ausente me sinto daquele meu cenário. Porque não posso nada.

Nem posso ter outro drama. Nem lama para meus pés. Nem ter os lábios beijados.

E escorrega entre os cílios o sono. O pano de fundo de minha fantasia. Seria assim minha agonia de acordar: ser eu e minha pele e meu rosto e meu insípido ar confinado e os olhos semiabertos e.

Deitado estou. Deitado assim meu corpo toma para si a ruptura confortável do colchão. Se do chão se tratasse, sugaria de mim a ruptura do desejo de estar ali. Finca a dureza na carne. E tarde se demora dormir. E fora se estende o impacto do desconforto. Todo o corpo reclama. Trama sobre o piso frio outras acomodações.

Sons. Penumbra. Luva para os pés. Teses e constatações sobre essa insônia. Talvez uma crônica. Água tônica antes de dormir. Um fim para os pensamentos que vagam quando não se consegue a inércia. Que péssima hora. É essa agora sob o lençol. O sol do dia já secou o orvalho de algum campo longe daqui. Já percebi. Já entrei na lógica da rotina. Mas a retina molhada de lágrima. Mais, não quero despertar o sono para que venha apagar todo o corpo. E tonto deslizo sob e sobre o lençol. E o sol crava lá fora sua marca.

A cama descarta as lamentações. As canções de amor que me fazem lembrar tua ação de me olhar. Tua ação de estar impondo um tempo ao nosso encontro. A partida para o próximo ponto. Conto os ponteiros do tempo. São tantos. São prantos todos os momentos. São pensos os finos traços que dão as características de um triste encontro. Que espanto deverá ser meu rosto em tantos lamentos. E tento não imaginar. Estar ligado ao imaginário. Mas também lamento estar. Querendo tê-lo aqui. A suprir meu sono. O pano de fundo de alguma viagem. Miragem de um templo quente e de arbustos espinhosos. Chorosos tempos. Formosos dias. Castroso realismo. Sofismo atualizado.

E sobre a cama deslizam outras coisas: cadeira, família, telefone e namorado. E calço as horas de lembrança. E a alma lança entre todas essas coisas o teu retrato.

Pactos. Pesadelos. Cabelos molhados depois dos banhos de chuveiro. Espelho manchado pelo atrito lápido da pele das costas tuas nuas na nossa última transa. Santa hora!

Deixa perto assim o significado. O lado belo capturado. E ponho os sentimentos em algum lugar fora de mim. E sim é a resposta a teus desejos. Dos meus, esqueço. Ou não. Ou são tão cúmplices que se tornam desejos unos. E se aqueço meus dedos com teus dedos: beijos, pêlos arrepiados. Tê-los todos. Gostos. Poucos. Múltiplos. Essenciais e últimos.

Surtos de esquecimento.

Agora o cansaço é maior. É pior quando assim. Agoniza a priori das cantigas de ninar. Passear e corrompido. Vestígio de qualquer sono perdido. Libido. Sono. Desejo. Lembrança. Punheta. Delírio. Gozo. Gala. Queima a pele.

Agora satisfaz o corpo. Me torno refém. Retém. Contém o meu todo. Sofro o fim. Sofro a distinção das lógicas. Dialoga fatos permanentes. Não guia os errantes. E as emergências se perdem em qualquer aspecto.

Prefiro ficar quieto. Prefiro não estar perto. Prefiro que não esteja certo qualquer ressonância. As discrepâncias são tontas. Tantas. Andam em passos largos. Me deixam para trás. E passam por todas as portas. Destrancadas. Arrancadas por tanta fúria. Impura conclusão: o quinto sono.

E não acordo. Não concordo comigo. Não suplico que despertar seja a melhor saída. E se vítima sou. Porque não sou dormir. Dormir é culpar a mim por não tocar o dedo midinho do pé no chão quando piso. Que riso me assalta nessas horas!

Sou cínico. Tímido também. Mas cínico. Fico calado. Percebo os detalhes. Pareço querer abusar de tudo. E plugo o desejo para todas as ações.

Sons. Penumbra. Forças antagônicas. É assim a crônica dessa torta história. Escória por toda a parte. Sobrevoam sobre a cama. E não identifico uma ligação. Talvez por não haver. Se há, não sou vínculo. Íntimo assim de mim mesmo. Nem conheço o eu. A controvérsia. As peças que inibem a minha grandeza. E pode parecer arrogante. Por grande ser a confiança. Arrogância. Lança a mim a denominação. Vínculos sem fim. Inacabáveis. Irrevogáveis. Palpáveis ou não.

E do quinto sono não posso acordar. Porque nele me vejo em criação. Numa construção de retorno revogável. Se perde as propostas de exageros. São os defeitos minimizados. Sou eu menos mesquinho.

Mesquinho. Um deles.

Quaresma
Enviado por Quaresma em 21/02/2006
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