[Visitação: Demônios Antigos]
Por que me expresso como me expresso? Por que escrevo o que eu escrevo? E o que de fato expresso? Não creio em nada, e nada vale a pena, desisti de falar aos homens, enquanto vivos, quentes, e falo com eles enquanto realidades passivas, aproveito-me do poder que tenho neste instante em que eles não me podem obstar os pensamentos - falo enquanto escrevo, isto é, no momento em que escrevo. Covardia? Nem digo, nem desdigo - cada um com seus embrulhos - eu tenho sustos se falo demais. Falar é criar tropeços. Mas eu me recrianço quando embrulho pedras com todo o cuidado, e coloco-as no caminhos dos outros. Depois, escondo-me, e observo o rodeio de olhos de quem passa pelo objeto-nada, que eu, pequeno deus então, acabei de criar. Criar o nada não é nem um pouco desprezível! Eu crio suposições nas mentes alheias - sou o outro, o infernal outro na vida de quem me vê, e me olha. Melhor passar sem ser no mundo dos outros? Melhor nem ser nada, nada...
E no entanto, eu me expresso... eu me desdobro em escavações metafísicas [tinha escrito "inúteis" - aqui fica o registro da mudança, o texto riscado] sobre as minhas sensações - eu finjo poemas, e finjo simplesmente por que eu não sou poeta, mas vejo-me como uma praga, cipó rastejante que se enovela nas coisas, assim eu estou espalhado no mundo: sou distensas terminações nervosas, tentáculos captantes, sofrendo um inferno de desejos, querendo mais do que pode.
Em tempo: eu não sou poeta, pois não posso ser o que não sei o que é, isto é, ser da mesma forma que sei ser um cientista. Eu sei apenas que tenho sensações, pois, além das equações, elas são tudo que se presentifica com nitidez em minha mente. Ser poeta é não saber-se; é não saber-se o que se é? Eu cultivo as minhas sensações como se cultivam os fungos: no escuro. É do escuro de mim que tudo brota - o escuro me clareia? O escuro me desguia? O escuro me responde - responde que nada vale a pena, que vida é um sopro efêmero, que tudo é mistério, que eu sou um estranho, que eu existo, mas o outro não, que toda a
paisagem o é apenas para mim - e mais nada!
Descreio de toda psicologia, não padeço do mal moderno de ter um inconsciente, mas sou rendido aos mistérios da Natureza, sou um Físico, por sinal - sinal que não justifica nada - a minha morte é que me tem, pois eu a trago nos olhos, na boca, na saliva, no esmoer dos meus dias. Como os demônios de antigamente, eu sou vigente nas encruzilhadas da minha vida, crio-me mais é nos rumos que faço meus.
Não, eu não ousaria dizer que sou tomado por demônios; nem alma eu tenho que interesse a algum demônio. Eu descreio de demônios mesmo tendo crescido num tempo de Minas em que as assombrações visitavam o mundo com freqüência, principalmente nos entardeceres. Aquele cavaleiro parado no mourão da porteira da fazenda, no lusco-fusco da divisa do dia com a noite, o que era? O que era? O seu cavalo de tão silencioso, trotava no ar, e quando a cachorrada pegou a latir, o cavaleiro sumiu em passos de lã, silenciosamente perdeu-se na invernada, antes que pudéssemos tomar tento dele. Era o demônio? Era? Eu vi, mas que sei eu, que sei eu do que os meus olhos vêem! Mas hoje em dia, as assombrações não mais nos visitam - quem sabe se na velha Minas ainda não se dê noticias de alguma!
Mas eu descreio de demônios, isto eu afirmo no clarão do dia, sob o sol quente... De noite, não. De noite, as minhas sensações me visitam - elas são o demônio que me entra sob o couro - quem tem demônios, os tem "no couro", não na pele, é claro - quem é que não sabe disso? As piores trevas não são as trevas da noite - são as minhas vacilações.
E então, eu olho o teto, eu olho o nada, eu respiro devagar, eu repiso meus sentires, eu rumino as brotações do meu escuro - sou visitado de minhas sensações - eu escrevo, eu me expresso como me expresso - sem dizer nada, como agora, neste instante. Se espremer, não sobra nada, pois tudo ficou de fora, sobrante, vazante, ainda por ser dito - jamais alguém diz exatamente o que quer dizer. O que eu queria escrever ainda há pouco não é o que de fato acabo de escrever - um corrupio, um sedém de pensamentos que se perdem - e se perdem? Quem é néscio, simples, volte-se para mim, diz o provérbio egípcio quando quer relatar o clamor da Sabedoria. Eu me volto para mim mesmo e sou menos sábio a cada instante que sucede ao anterior - o tempo põe-me a perder, azanga o meu manjar, estraga-me a saúde, enfim.
Olha só: réis coados, como quer o conterrâneo João Rosa, sei que são demônios, demônios antigos que falam pela minha boca, e também escapam-me pelos dedos quando desfio em escrita as minhas sensações.
E como sempre digo, eu não disse nada - o mais, ficou de fora, batendo na tramela, mordendo na corrente querendo sair - demônios, ara!
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[Penas do Desterro, 02 de agosto de 2008]