AMOR E CICUTA*

Domingo. O último de agosto. Vivo tensa neste dia. Penso em amor, deliro na eternidade, pareço boba. Refaço e desfaço algumas ligações. Busco no canto dos pássaros – logo após a minha janela – algo que não seja eu mesma. Tenho medo de mim. O tempo não me pertence. Estou no mundo, sorrateiramente, querendo sair dele... Até uma lagartixa me assusta! Fecho os olhos. Abro uma lembrança que trago trancafiada a mil chaves, como se fosse um segredo confessado por estrelas cadentes.

Cato algumas frases de Cecília Meirelles e solto a minha vontade de não te ver nunca mais. Perco, ilusoriamente, a chave. Talvez fosse melhor. Talvez na hora da Ave-Maria eu beba cicuta e deixe para você uma linda – infindável – carta suicida. Coisas de quem se despede, louca de vontade de ficar pelo menos mais sete minutos. Tudo por um beijo e pelo jeito de dizer ternura, com os olhos, abolindo as palavras. Estou no topo da minha lucidez. Se me atiro, enlouqueço. Domingo é um dia esquisito, parece que não passa. E como custa escrever diante do espelho, ameaçando com os estilhaços a minha figura. Queria ser o rosto de alguém que amasse. Tolices, eu sei, por não conseguir manter o fio da imagem.

Saio do espelho, mas ele parece ter vontade própria. De qualquer outro ponto, olhando através dele, o alguém que ambiciono ser, me vê. Escapo. Olho os retratos. O homem conseguiu congelar a imagem e, com ela, tantas emoções! Meus olhos acendem um flash esquisito, teimam em saborear alguns negativos (digo, momentos), inevitáveis. Insisto em escrever, muito embora não sinta a menor vontade. Pulo das teclas para a tinta porosa de uma Paper-mate, cor preta, dois corações.

Penso em desenhar com traço fino – bem ao estilo Ângelo Roberto – o nanquim das minhas histórias. Tecer figuras, romper perspectivas. Adormecer no colo de uma das criaturas, recém-inventadas por mim. Quase fim de tarde. Algumas pessoas caminham pela rua principal enquanto outras, transversalmente, conversam nas portas. Os diálogos fogem com o sol, que começa a descer para outro país. O silêncio indecifrável das palavras sobrevive.

Penso estar amando. Mas é provável que tudo não passe de mais uma paixão, nutrida pelo desejo de, finalmente, ser amor. Olho as paredes, cismo com as mensagens das figuras coladas. O suor de alguém escorre do meu corpo, mas a lágrima é somente minha, indivisível. Levanto e como um chocolate. Devo ter entrado em erupção e agora não sei se explodo, ou se volto atrás e adormeço. O cachorro late. Alguns pombos namoram nos telhados, voam juntos e amanhã são outros. Tento a televisão, mas tanto as cores quanto o preto-e-branco me aborrecem.

Caminho até a geladeira. Observo a disposição das poucas opções. Os pássaros insistem na mesma trilha sonora. Posiciono-me a meio passo do tédio. Alguém quebra alguma coisa na rua. Não me assustaria se fossem as lâmpadas da minha casa. O inseto pálido – leia-se telefone – permanece mudo e pirraça o espaço com a sua presença sem motivos. Quase 18 horas. Começa a contagem regressiva. Apanho o copo, lavo com detergente neutro, cheirando a maçã, e preparo a dose. Causa mortis: cicuta e amor.

Restam apenas alguns minutos. Preciso escrever a minha carta, a sua resposta. As mãos começam a falhar e a memória já não reconhece o alfabeto, há tanto tempo aprendido. O último gole. Procuro o “a” para escrever adeus, o “b” para deixar o beijo, a boca, o berço do que sonhávamos. Desisto. Opto por beber outra vez a sua presença. Largo mão do ensaio e preparo-me para a Ave-Maria da minha – quem dera nossa – paixão. Salva por um triz. Em lugar de cicuta, tomo um suco de groselha.


*Publicado no Espaço Livre do jornal Tribuna da Bahia em 31/08/1988. Dedicado agora ao mestre e colega José Olympio da Rocha (in memoriam).
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 22/07/2008
Reeditado em 24/07/2008
Código do texto: T1092794
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