REFLEXÕES SOBRE A MORTE ( Celismando Sodré - Mandinho)

REFLEXÕES SOBRE A MORTE

( Celismando Sodré - Mandinho)

Foi do início até o final da adolescência, como geralmente acontece, quando comecei a chacoalhar o mundo cultural das idéias, crenças e costumes recebido como legado das velhas gerações, que comecei a vivenciar em mim uma tímida e progressiva autonomia em direção a uma maior liberdade intelectual, através de reflexões sobre a complexidade da vida, os fenômenos do mundo e sobre a validade das supostas verdades incutidas em nossa mente pelos adultos. Iniciei assim, como um imberbe temeroso e inexperiente, o meu caminho no mundo das idéias próprias, enfrentando o maior dilema existencial do homem: a inexorabilidade da morte. Já sentia dificuldades nesta época, em acreditar nas explicações judaico-cristãs sobre o céu e o inferno, sobre o criacionismo e sobre o destino dos homens, desconfiando dos dogmas absolutos de todas as doutrinas religiosas.

Com o passar dos anos, vivendo aquela fase turbulenta e difícil do fim da adolescência e início da fase adulta, continuei a ponderar sobre a possibilidade da finitude da existência do homem e até dos demais seres vivos. Pensava em ambos, simplesmente como máquinas biológicas, um conjunto de células, órgãos e substancias químicas, aminoácidos em constantes reações, que geralmente nascem; os que sobrevivem crescem, quase sempre procriam e morrem e se acabam depois do último suspiro, se decompondo como qualquer elemento da natureza e se transformando em pó e nada mais. Como tais reflexões me angustiavam! A idéia de viver e desaparecer definitivamente, de nunca mais rever e conviver com meus pais, filhos, irmãos, amigos e demais seres humanos, provocava nas profundezas do meu ser, um sentimento real de tristeza e de dor.

Não conseguia ver sentido na vida se realmente tudo se acabasse com a morte. Se fosse assim, porque eu teria de ter consciência dela? Se todo ser humano é apenas matéria, porque ele desenvolveria, ao longo da evolução, a noção do bem e do mal, das virtudes e dos defeitos, da moral e da ética, da loucura e da sanidade? Porque um amontoado de moléculas evoluiria a ponto de fazer surgir um cérebro complexo e expansivo, seria apenas para perpetuar o nosso DNA, nosso código genético como afirma alguns biólogos? Alma, espírito, outro mundo, como teria surgido na mente humana essas explicações metafísicas, estas concepções transcendentes para além do visível e do concreto como estamos acostumados a constatar? Seria uma espécie de consolo, de subterfúgio da mente diante de uma realidade dolorosa e inquietante? A de que somos apenas um conjunto vivo de proteínas, aminoácidos, células, cartilagens e órgãos agrupados em um corpo que está fadado a virar comida para os microorganismos, bactérias e vermes numa transformação ambulante da natureza, comprovando a afirmativa do grande Lavoisier de que “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.

Estas dúvidas martelavam meu cérebro e as respostas encontradas não contentavam meu intelecto. Não via qualquer lógica ou coerência nesta possibilidade do nada além da matéria, ao mesmo tempo que vivia angustiado por não obter respostas convincentes e satisfatórias para os meus questionamentos sobre a perpetuação da consciência depois da morte. Foi diante destes dilemas, já no início da vida adulta que surgiu este poema que versa sobre os pensamentos e sentimentos dessa fase conturbada e fragmentada do meu ser:

ENTRE O NADA E A DÚVIDA

( Celismando Sodré- Mandinho)

Acordo de um sonho fantástico

De emoções inexplicáveis

E de felicidade quase completa.

Penso sobre o sonho que é um mistério

Talvez a prova incompreendida

Do que existe além do concreto

O outro lado da constatação empírica.

Novamente aquele fantasma me ronda

Afasta minha súbita e onírica felicidade

Trazendo-me para a realidade cruel.

E como um predador faminto e amorfo

Acaba com a esperança do meu sonho

Torturando-me nos momentos de dúvida

Invadindo, sem permissão, minhas reflexões.

A possibilidade do nada é este fantasma

Que abala minha estrutura racional

Põe por terra qualquer misticismo

Metafisicamente elaborado

Por qualquer doutrina filosófica

E a angústia que daí resulta

Provoca uma infelicidade real.

Por que eu teria que ter consciência

De que me tornaria tão somente pó?

E não sobraria nada além deste corpo efêmero

Que será consumido implacavelmente.

Por que o mistério desse caminha sem retorno

Que provoca o medo do desconhecido

Além da linha divisória entre a vida e a morte.

Por que as vezes tal possibilidade me perturba?

A ponto de estar com medo a desabafar

Nestes inquietantes versos sobre o nada

Que fere meu coração e embaralha minha razão.

Por que foi me dado o livre arbítrio?

Esse guardião da liberdade e do devaneio

Para estas incertas conclusões sobre o vazio.

Oh! Superior energia cósmica

Analiso o cérebro, o universo e a luz

E quero ter fé na tua suprema inteligência

Por que não vejo outra explicação lógica.

Imagino que talvez sejas tão diferente

Do temível Deus a nossa imagem e semelhança

Nascida da nossa infinita e fértil imaginação.

Oh! Senhor que me fez pensante

Se penso sobre tais dúvidas que me cercam

Peço que afaste de mim a possibilidade do nada

Esse fantasma incoerente e defensor do acaso

Dando-me o porto seguro e constante da fé

Na imortalidade de todas as existências

Acalmando minha atormentada consciência.

Hoje, estão sendo estudados e pesquisados pela ciência, os fatores que explicam porque os que alimentam a fé verdadeira numa espécie de transcendência da alma( ou seja lá o que for), os que acreditam numa força ou energia suprema onisciente, onipotente, capaz de dar um sentido maior aos acontecimentos e fenômenos, capaz de explicar as leis do universo e de confortar os espíritos mais contestadores e inconformados, são mais serenos e compreensivos diante da vida e da morte, são mais imunes as certas crises existenciais e até ao desenvolvimento de doenças precoces; por isso esta minha busca dolorosa e constante por uma fé que seja inabalável, minha perplexidade e angústia diante das dúvidas, por não me identificar ou acreditar nas explicações fáceis, dogmáticas e definitivas encontradas nos livros sagrados das religiões.

Desde cedo, eu desconfiava de toda crença obtida pelo temor; das pregações que enfatizavam os castigos implacáveis de um suposto Deus punitivo; do fogo eterno do inferno. Ficava a me perguntar: como uma suprema inteligência de sabedoria infinita, arquiteto do universo, como dizia as escrituras sagradas, criador de todos os seres viventes, inclusive dos homens, poderia impor as suas criaturas, por natureza imperfeitos e falíveis, um castigo cruel implacável e eterno, sem dar qualquer chance destes se redimirem dos seus erros e pecados, procurando corrigi-los. Para mim, só tinha sentido uma fé despertada de maneira espontânea, natural, resultante das experiências pessoais de cada um, conseguida através de uma complexa, dolorosa e necessária viagem para dentro de nós mesmo, para a essência de tudo que é sagrado e puro. Talvez, o Deus e a verdadeira fé que procuramos nos altares dos templos, igrejas, mesquitas e imponentes catedrais, esteja lá, eternamente a nossa espera, no âmago do nosso próprio ser. Não quero seguir a um Deus porque tenho medo, porque temo, quero seguir a um Deus porque quero profundamente, porque vai ser fundamental para meu crescimento integral como ser vivo e minha busca por lógica, harmonia, serenidade, sabedoria e justiça.

Nas minhas reflexões sobre o fim de tudo, sobre a morte e a busca pela fé, sobre a permanência da nossa consciência no universo, não conseguia enxergar com clarividência muitas questões complexas e nem explicar tantas dúvidas com relação às estas inquietações tão conflitantes em mim, percebendo que em outros, tais explicações pareciam tão óbvias e tão facilmente assimiláveis. Muitas pessoas demonstram um incrível preparo para enfrentar esta crucial passagem para uma realidade desconhecida, independentemente de credo ou formação educacional e intelectual. Neste sentido, mesmo reconhecendo que a dúvida foi e é fundamental para os questionamentos filosóficos, como bem enfatizou “Descartes””, sei que os que possuem a verdadeira fé, levam uma grande vantagem psicológica diante daqueles que vivem atormentados pelas dúvidas, como se nada abalassem suas convicções diante de um momento tão crucial. Muitos filósofos, cientistas, letrados e poderosos tremeram perante o inevitável. Enquanto muitos aceitaram a morte com uma incrível segurança, que parecia vir da certeza de que o corpo transitório passa, e a alma permanece num ciclo que jamais se encerra.

Por isso, mesmo vacilante e ainda sem a segurança que desejo, jamais desistirei de buscar esta firmeza e esta inabalável fé na continuidade de alguma forma de existência após a morte, ainda que seja completamente diferente do que estamos acostumados a ouvir, ler e imaginar; porque ao longo da vida, alguns se preparam para morrer de uma maneira mais conformada e superior do que outros; talvez, esta seja a maior prova de sabedoria entre os homens e as mulheres.

APRENDENDO A MORRER

( Celismando Sodré – Mandinho)

Talvez a maior prova da sabedoria de um homem

Seja a de aprender a morrer serenamente

Quando a morte se aproxima de uma forma inevitável

Sem a angústia e o medo característico

Que quase todos demonstram quando no limiar

Da misteriosa passagem tão desconhecida

Que faz despir todas as máscaras e disfarces

Deixando totalmente nus todos que a esperam

Aprender a morrer é atingir a plenitude possível

Na consciência do mundo e do universo

Na percepção metafísica das causas essenciais

É reconhecer os limites que a natureza nos impõe

E quantos que se julgavam sábios e preparados

Tremeram e se acovardaram no momento crucial

E outros, humildes, aceitaram de forma divina

Como se fossem acalmados por uma brisa celestial.

Talvez a simplicidade, a fé e a sapiência

Fazem parte da chave transcendental

Que faz um homem preparado para tal momento

Independentemente do credo, situação ou filosofia

Possibilitando-o para a travessia da linha divisória

Do mundo material para o além do que ninguém sabe o que há

Fazendo desse momento o maior mistério da vida

Mistério esse que a ciência nunca soube explicar.

Por isso aprender a morrer e harmonizar a mente

Para a concepção intuitiva de certas verdades cósmicas

Ofuscadas pela cegueira humana e pelas miragens do mundo

E quem por algum motivo consegue obter essa luz

Parece guardar no íntimo um profundo segredo

Que cada um precisa desvendar individualmente

Vencendo assim a dor, as paixões e os desejos

Para aprender serenamente.

“Para meu tio e amigo Tonhão, que demonstrou tamanha grandeza, na hora crucial”

MANDINHO
Enviado por MANDINHO em 15/07/2008
Código do texto: T1081023