Sim, eu irei ao inferno...
Todo mês, o Poeta Neu levava papéis e fitas de máquina a um interno num Hospital Psiquiátrico...
Poeta Tancredo (o interno)
Não importa a falange de anjos a que pertence
Nesse momento necessito de algumas palavras
Não sei ao certo se verdades ou mentiras
Apenas preciso de uma boca
Para me dizer versos de outras esferas...
Sim. Estou pronto para ouvi-lo
Encontro-me nu, e despido de preconceitos
Eu arranquei os meus olhos
Estou cego...
Sim. Estou pronto para ouvi-lo
Seja lá qual for a sua falange de anjos...
Serafim (mensageiro de Lúcifer)
Meu caro Poeta Tancredo
Inicialmente, a mentira toma feições fantásticas
Amolece o coração dos desavisados
Corrompe o mais fanático dos puritanos
Invade o corpo e atravessa a alma...
Poeta Tancredo
Não importa a falange de anjos a que pertence
E se a mentira tem a forma de uma deusa do Olimpo
A mim, nesse momento, bastam vozes
Não vozes do silêncio
Mas, gritos de vida...
Serafim
Meu caro Poeta Tancredo
Às vezes, ocupo os caninos dos cães
Minha baba se esparrama por terrenos baldios
Produzo queimadas nas mais variadas matas
Rabisco as folhas em branco de livros sacros
Cuspo em imagens de mártires canonizados...
Poeta Tancredo
A mim não importa a falange de anjos a que pertence
Já vi moralistas se banharam do suor de ninfetas
Pulgas saltarem dos pêlos de cães raivosos
Vi manchas de cadáver em vestidos brancos de algodão puro
Também presenciei bêbados jogados na sarjeta...
Não. Eu não quero saber a sua falange angelical...
Serafim
O que tem em troca pra me dar?
Sou recompensado por tudo que faço
E recompenso a quem me chama
Sou fiel a quem me presta fidelidade...
Então, o que tem?
Poeta Tancredo
Nem mesmo a minha carcaça vale algo
Já faz anos que a abandonei ao léu
O céu se recusa a abrigá-la
As sucatas não pagam um vintém por ela
Não. Creio que não possuo o que você quer...
Ou será que está interessado nesse bagaço?
Serafim
Se nem o céu, que se diz acolhedor dos miseráveis lhe recebe
Não haverá humano neste planeta que o receberá
Seus gritos jamais serão ouvidos
Nem mesmo pelos surdos
Mas posso me interessar por tal caco...
Poeta Tancredo
Não vejo onde e como posso satisfazê-lo...
Serafim
Basta ouvir-me
E será bem-vindo ao meu mundo...
Poeta Tancredo
Como posso ouvi-lo?
Serafim
Você me disse que necessitava de palavras
Para se falar é necessário de um ouvinte
Então, basta me ouvir...
Poeta Tancredo
Muito mais que ter bons ouvidos
Tenho comigo a lei suprema dos pacientes
Todas as palavras e todas as vozes
Seriam insuficientes para conseguir me vencer
Vá lá!
Diga as confissões que quer me confidenciar
Não me importo com trocas, nem compras, tampouco vendas
Sua identidade para mim é desconhecida
E também não quero conhecê-la
Vá lá!
Serafim
O que você acha das fases da lua
Do sol de inverno
E do ciclo reprodutivo das fêmeas?
Claro que não estou aqui para perguntar
Afinal, você é só ouvidos...
O ser humano ouve vozes com diferentes mensagens
Aos poucos assimila um ato
Repassa estes momentos para a vida
Se perturba, e abandona o palco...
Não consegue conviver com os gritos da sua debilidade
Multiplica os venenos que o faz um ser com limites
Próprio para criar muros e barreiras...
O ser humano ouve muitas vozes simultaneamente
Engasga com venenos sem efeito
E se mata sem conhecer os antídotos...
Poeta Tancredo
Qual é o caminho a seguir?
Serafim
Nada se compara aos grandes filtros da dor
Você experimenta todas as ervas
E apenas uma o libertará dos males...
Poeta Tancredo
Você fala como um viciado em sofrimento
Aquele que profetiza as calamidades
Participando diretamente do desfecho...
Ou será que a pena máxima é o meu destino?
Serafim
Não há pena máxima para a dor extrema
Ela, por si só, é o receituário da felicidade...
Imagine um céu sem raios e trovões
Não haveria proposta de chuva...
E o que seria das plantas?
Poeta Tancredo
Escuto passos que vêm do corredor
Creio ser a dose para que eu possa dormir
Volte amanhã para esclarecer o não esclarecido...
O autor
Enfermeiro e enfermeira noturnos com uma bandeja de drogas nas mãos...
Zoraide (enfermeira noturna)
O que seriam destas drogas se não fossem estes malucos?
Ficariam expostas nas prateleiras das farmácias...
Como seriam os sonos destes loucos?
Creio que para eles
O mundo se apresenta às avessas...
Às vezes, penso até que eles são normais...
Mas como é ser um ser normal louco?
Minha mãe assou dois frangos neste domingo
A farofa doce estava uma delícia
E os meus sobrinhos, aqueles pestinhas
Não pararam de jogar videogame...
O quarto trinta e quatro é tão longe...
Policarpo (enfermeiro noturno)
Esquecemos o cobertor... está quente... buscar ou não buscar...
O regulamento diz buscar... a vontade diz não buscar...
Aquecimento... suor... sono pesado... sono leve...
O cobertor e o louco... o regulamento e o clima...
Buscar ou não buscar... então, buscar...
O autor
Os enfermeiros entram no quarto trinta e quatro: Policarpo com o cobertor em suas mãos e, Zoraide segurando a bandeja repleta de drogas...
Zoraide
Boa noite! Senhor Tancredo
Trouxemos mais um bom sono para o senhor...
A lua quarto crescente está tão sorridente
Quanto o sorriso do gato de Alice...
O seu semblante está tão brilhante
Quanto o brilho da Estrela Dalva...
Trouxemos mais um bom sono para o senhor...
Poeta Tancredo (pensando)
A seringa é pequena
Mas a cada dia parece maior, bem maior
E a agulha chega a tocar o teto... o teto é mole...
Aquele líquido percorrerá minhas veias
Se espalhará por todo corpo
Formando uma pororoca nas margens do cérebro...
Policarpo com a seringa na mão direita...
A picada não vai doer
É apenas um pernilongo sem asas
Mosca tsé-tsé...
A picada não vai doer
O procedimento é o mesmo todo dia
Basta baixar a calça do pijama...
A picada não vai doer
É apenas um pernilongo sem asas
Mosca tsé-tsé...
Zoraide
Eu adoro ver as suas nádegas
São tão brancas quanto a sua face
Nem parece que você é velho...
Abra a boca e engula estas pílulas
Hoje são: a verde e a amarela
Não pense que é dia da pátria
Eu adoro ver as suas nádegas...
Policarpo após aplicar a injeção...
A picada não doeu
Foi apenas um pernilongo sem asas
Mosca tsé-tsé...
Vocês comeram todo frango?
A picada não doeu
Foi apenas um pernilongo sem asas
Mosca tsé-tsé...
Zoraide, no corredor de volta à enfermaria...
Não. Sobrou apenas as coxas
Meus sobrinhos queimaram a televisão
Não assistimos o “Domingo Legal”
Mas da farofa doce não sobrou nada...
Mais uma noite de sono para o Senhor Tancredo...
Policarpo
Minha mãe não sabe assar frango
No domingo assistimos o “Domingão do Faustão”
Comemos macarronada...
Não me importaria se fosse arroz e feijão...
Mais uma picada nas adegas do Senhor Tancredo...
Poeta Tancredo (antes de dormir)
Dia após dia
Esta mosca maldita transforma o dia em noite
Faz eu conhecer bares de todas as culturas...
E confesso
Minha cara e amada Brigite
Que deixá-la é o que mais me dói
Sofro ao saber que ficará presa
Nessa teia que construiu para ser o nosso ninho
Mas o que fazer se a mosca não quer picá-la
E ainda não criei coragem para pedir aos enfermeiros
Que lhe aplique este líquido sonífero...
Sabe que viajarei por recantos nunca vistos
E fica sempre a me esperar
Paciência somente vista nas amantes eternas...
Sua devoção me causa remorso
Por partir, e não levá-la...
Peço aos guardadores da noite
Que durante a minha inevitável ausência
Protejam a tão devotada amante...
Suplico-lhe, meu grande amor
Que continue a me esperar
Amanhã pela manhã
Quando não houver mais líquido sonífero no meu corpo
Estarei aqui
Com o corpo e os olhos abertos pra você...
Boa noite! Meu amor...
Brigite (aranha ao amante quase adormecido)
Sei que não quer fazer tais viagens sem mim
Guardo as noites em claro
Apenas para acompanhar este seu tão sofrido sono...
Vejo seu corpo inquieto nestas jornadas
Melhor seria não fazê-las
Mas o que fazer?
A luz se apaga e a tormenta se instala na sua mente
Sofro consigo quando é picado por este mosquito sem asas
Mas o que fazer?
O que posso fazer!?
Apenas esperar que a luz volte novamente
E apague a escuridão dos seus sonhos...
Não se sinta egoísta por não me levar
São suas estas viagens
E retornar é obra de sua decisão...
A vida fica mais simples sem perguntas
Mas como não perguntar
Se elas existem?
Minha mãe sempre esperou o meu pai
Que seguia às cruzadas das grandes excursões
Por mundos que não lhes pertencia
Mas mesmo assim ela o esperava...
O que devo fazer?
Tecer, tecer e tecer
Até que o meu homem retorne
Desta triste cruzada...
Boa noite! Meu amor...
O autor
O Poeta Tancredo adormeceu, talvez entorpecido com tantas drogas. Foi a caminho dos sonhos, onde a sua mente vagaria.
Ele sonhou que estava amarrado numa cama. Do seu lado direito estava um Anjo do Todo-Poderoso. E ao seu lado esquerdo estava um Anjo de Lúcifer.
No sonho, Tancredo estava acordado...
Anjo do Todo-Poderoso
O homem cria os seus próprios preceitos
Coloca o homem à sua disposição
Apenas para satisfazer as suas conveniências
O homem inventa os seus próprios deuses
Queima em tábuas seus mandamentos
Apenas para poder usufruir dos homens...
Onde está o homem neste momento?
Poeta Tancredo
Inventaram-se os dogmas para nos aprisionar
Tiraram-nos a liberdade de pastar pelo universo
Onde estão os deuses neste momento?
Anjo do Todo-Poderoso e Anjo de Lúcifer
Tristes!
Sentados em seus tronos
Imaginando os erros cometidos por seus mensageiros
Ou por eles mesmos!
Poeta Tancredo
Mas como um deus pode estar sentado
E pior, triste?
Temos estas referências do Bem e do Mal
Mas qual Bem?
Mas qual Mal?...
Não consigo ver um deus sem solução...
Anjo de Lúcifer
Não existe um mundo com dois senhores
A batalha é fruto da inspiração humana
O juízo final não existirá em plano algum
A lama é fiel à lama
E a nuvem branca é fiel à nuvem branca
Não existe um mundo com dois senhores...
Você está num plano de cobaias
Onde o certo toma as feições do errado
E o errado se mostra a todos como certo
Mas não há certo, nem errado
Apenas propostas apresentadas como tal
Nem certo...
Nem errado...
Poeta Tancredo
Dogmas, dogmas, dogmas e mais dogmas...
Um deus vencido por dogmas
Custa-me acreditar nesta situação!
Anjo do Todo-Poderoso
Vê aquela escada com degraus disformes
Uns tão pequenos quanto um grão de mostarda
Outros enormes como se ali coubesse todo o universo?
E assim caminha a mente de todos os humanos
Veloz e determinada
Lenta e persistente
E os degraus são mutáveis
Se transformam num piscar dos olhos...
Poeta Tancredo
São amplitudes com conotações positivas e negativas
A resultante é o equilíbrio das forças...
Ora! Aos dogmas...
São humanos e desnecessários...
Deus não deveria estar sentado
Nem triste...
O autor
Os enfermeiros diurnos com as trocas da peças de cama do quarto: trinta e quatro...
Telma (enfermeira diurna)
Lençóis e fronha limpos para o quarto: trinta e quatro
Hoje, o Seu Tancredo receberá alguma visita?
Ferdinando (enfermeiro diurno)
O Poeta Neu virá às duas horas
Apenas ele tem vindo nos últimos seis meses...
Telma
Papéis em branco...
Muitos papéis em branco...
E aquela máquina de escrever
Que mais parece obra de museu
A bater letra a letra...
O que será que tanto escreve?
Ferdinando
Bom dia!!! Senhor Tancredo
Já se ouve o canto dos caminhões na rodovia
E o sol resolveu clarear o ocidente...
Telma
Bom dia!!! Senhor Tancredo
A cascata fria já está ligada
A pasta dental com listras vermelhas
Tomou todas as cerdas do seu limpador dental
Bom dia!!! Senhor Tancredo...
Poeta Tancredo
Bom dia!!! Srta. Telma
Bom dia!!! Sr. Ferdinando
O veneno do sono foi embora do corpo
Sinto um odor repugnante no lençol
Deve ser o efeito dos remédios...
Sr. Ferdinando, tem pintado mais algumas telas?
Fiquei fascinado com a última que me mostrou
O olhar daquela aranha me lembrou alguém...
Ferdinando
Trabalho num novo tema:
“As bruxas do castelo ao lado”
Poeta Tancredo
Extraordinário!
Magnífico!
Ferdinando
Nem tanto assim...
É apenas obra de imaginação
Relato mental
Processo de descarga e descobrimento...
Telma
A conta d’água ficará uma fortuna
E as bactérias invadirão sua pasta dental
Vamos ao banho!
Parem de explorar os devaneios
Eles são marcas dos solitários
E estamos à três...
Poeta Tancredo
Somos quatro, Srta. Telma...
Se esqueceu da Srta. Brigite
E é melhor falarmos mais baixo
Penso que ela está cochilando
Sua madrugada foi muito exaustiva
Me protege a noite toda...
Telma
Desculpe-me Sr. Tancredo!
O autor
Ferdinando canta em tom baixo para não acordar a Srta. Brigite. Ele troca as roupas de cama do Poeta Tancredo...
Ferdinando (cantando baixinho)...
Eu tenho uma cama muito gostosa
Que me leva a sonos prazerosos
Viajo pelas órbitas dos planetas
E volto num piscar de olhos
Eu tenho uma cama muito gostosa
Que me leva a sonos prazerosos
Viajo pelas órbitas dos planetas
E volto num piscar de olhos
O autor
Telma sussurrando. Ela limpa o quarto: trinta e quatro...
Telma
Meu namorado avançou o sinal ontem a noite
Quando eu acordei das suas carícias iniciais
Meu vestido cobria as imagens da televisão
Estava toda arrepiada
E levei um susto...
O autor
O Poeta Tancredo banhando-se na cascata fria...
Poeta Tancredo
A Tora e um deus dos judeus...
O Capital e um deus dos comunistas...
Os Vedas e um deus dos hindus...
O Alcorão e um deus dos muçulmanos...
O Budha e um deus dos budistas...
O Novo Testamento e um deus dos cristãos...
O Sol e a Lua e um deus dos primitivos...
A Cartilha da Missa Negra e um deus às avessas...
Deus para os brancos...
Deus para os negros...
Deus para os amarelos...
Deus para os vermelhos...
Deus para os animais...
Deus para a natureza...
Muitos deuses...
Nem à Mão de Deus Padre
Santa Bárbara!
Bendita água que me banha
Limpando as impurezas que me cobrem
Devo cessá-la nesse precioso momento
Existe uma cota para cada interno
Até amanhã!
O autor
Ao terminar o banho, o Poeta Tancredo se viu frente a frente com um besouro-bombardeiro...
Poeta Tancredo
Por favor, Sr. Besouro
Não sou caçador de tais insetos
Não coleciono besouros em quadros-verdes
Por favor, Sr. Besouro
Não emita gases fétidos
Sou apenas um interno
Deste hospitaleiro hospício...
Façamos as apresentações
Sou poeta, o Poeta Tancredo
E o senhor, quem é?
Como chegou aqui?
Besouro-Bombardeiro
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Passeava inofensivamente
Vencendo cada gramínea
Que mesmo sem propósitos de combate
Estavam no meio do meu caminho
E tinham que ser transpostas
Uma a uma...
Vencer o mar verde das folhagens
E começar um novo roteiro...
O abismo tinha apenas quarenta centímetros
Quinze vezes a minha altura
Um enorme paredão de concreto rígido
Calçada de pedras num estilo português
Infindável avenida de desenhos simétricos
Apenas alternando duas cores...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Continuava o passeio
Com passos compassados e inofensivos
Sabedor do abadão que estava a me esperar
É que durante a queda não existe dor
Apenas aflição e muito temor
Do chão que aguardava o meu tombo...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Refletia sobre o passeio radical que teria
Dez intermináveis andares por vencer
Havia possibilidade de derrota
Ou simplesmente recuaria, nova derrota...
E me dirigiria para outros desafios
Sem encostas construídas pelo homem
Apenas a natureza
Mas não
Meu instinto vencedor falou mais alto...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Decidi a minha sorte
Resolvi romper as barreiras do medo
Abrir a minha vida para tais combates
E tomei o melhor posicionamento
À beira do grande paredão de concreto rígido
E confesso, me borrei todo
Mas retomei a autoconfiança
E me lancei rumo ao enigmático...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Vaguei por um céu com estrelas
Lua cheia apagada por nuvens invasoras
Que também invadiram o brilho refletido
Da eterna enamorada Estrela Dalva...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Nem me lembrei do mar verde
Tampouco da ferocidade dos meus predadores
Que se faziam ocupados em escapar
Do odor fétido e fecal do meu medo
Apenas caí por um espaço que se apresentava vazio
Sem dor física no meu corpo disforme
Intervalo finito num tempo que parecia infinito...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Atingi o objetivo final
Desta empreitada que parecia fatal
Meu dorso que acolhe as minhas asas
Recebeu o primeiro e o último impacto
Fiquei imóvel para saber das conseqüências
Mas nada me aconteceu
A não ser o fato de cair de costa
E por um tempo ficar me debatendo
Até conseguir a posição natural
Neste instante até as fezes não mais existiam
Meu corpanzil opaco brilhava
Tamanha claridade emitida pela lua cheia
Agora livre das nuvens invasoras...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Fui atingido pela gravidade
E sem nenhuma gravidade estava pronto
Novas aventuras
Novos roteiros...
Solitário
Eu, o besouro-bombardeiro, Morfeu
Espiei por todos os pontos cardeais
Ao sul, aquele paredão de concreto rígido
Ao leste, uma avenida interminável de pedras portuguesas
Ao oeste, a continuação daquele paredão de concreto rígido
Ao norte, uma janela aberta...
Foi assim...
Poeta Tancredo
Devo acreditar que o acaso o trouxe
Que tantos obstáculos naturais
Apenas se apresentavam como disfarces...
Máscaras que encobriam a verdadeira face?
Esperemos que estes enfermeiros se vão
Não é sensato um ser humano conversando com um besouro
Parece obra de maluco...
Telma (falando baixinho)
Tenha um bom dia, Sr. Poeta Tancredo!
Ferdinando (falando baixinho)
Qualquer problema, não se esqueça de apertar a campainha...
Poeta Tancredo (aos enfermeiros)
Obrigado por tudo!
Poeta Tancredo (a Morfeu, o besouro-bombardeiro)
Agora, podemos conversar à vontade
Somos três...
Morfeu, o besouro-bombardeiro
Como, três?
Eu sou apenas um
Você é apenas um
E, quem mais?
Poeta Tancredo (a Morfeu, o besouro-bombardeiro)
O tempo não foi suficiente
Assim, não apresentei Brigite a você
Ei-la dormindo ali no teto...
Morfeu, o besouro-bombardeiro
O que pensar de um humano
Que dentre tantas loucuras
Guarda amor por uma aranha
E ouve sem assombro a voz de um besouro?
Não, meu caro Poeta Tancredo
A minha chegada não se deu por acaso
Transpus tantos obstáculos
E venceria a todos
Pois a luz que vinha desta janela
Era a luz que me chamava...
Sei, por fontes confidenciais
Que muitos papéis em branco
Algumas canetas esferográficas
E fitas para a sua máquina de escrever
Visitarão você, e sua amada Brigite...
O apreço não tem preço
É mais que uma simples vitória
Muito mais que objetivos atingidos
Torna-nos ciente dos nossos valores
Estabelece-se o contato com a felicidade
Enfim, o apreço não tem preço...
Saiba, meu caro Poeta Tancredo
Que a insegurança, a incerteza
São como animais selvagens, todavia dóceis
E ao apresentarmo-nos como amigos
Tais feras se tornam tão domésticas
Quanto estes felinos que estão por aí...
Às duas horas, este animal selvagem o visitará
Trará consigo a estima e outros presentes
Eis o que lhe compete:
Mostrar, como amigo que é, o caminho a seguir
A aceitação do convite...
Poeta Tancredo (a Morfeu, o besouro-bombardeiro)
O desprezo é a maior das torturas
O mundo me despreza
Me coloca como um anômalo da sociedade
Não, eu não sou este ser aberrante
Apenas penso, e isso incomoda...
Sou grato a este menino
Não somente pelos presentes com que me agrada
Sobretudo, a amizade e o trato
Tão ouvinte
Tão cortês...
Morfeu, o besouro-bombardeiro
Pois é, meu caro Poeta Tancredo
Lúcifer aguarda ansioso esta resposta
Poderia ser tantos outros
Mas, se a escolha foi esta
Respeito é o mínimo que devemos ter...
Poeta Tancredo (a Morfeu, o besouro-bombardeiro)
Se é esta a missão que você me trouxe
A felicidade agora habita por esta parada
Serei partícipe desta empreitada
Sei que o Poeta Neu me ouve
E hoje, seus ouvidos me ouvirão
Eu sei...
Morfeu, o besouro-bombardeiro
Suas palavras são positivas
Deixam a todos que aguardam tal resposta
Ansiosos, e por demais felizes, esperançosos...
Tenho que ir embora
Não sei quantos paredões ainda terei pela frente
Até logo, meu caro Poeta Tancredo...
Poeta Tancredo (a Morfeu, o besouro-bombardeiro)
Saiba que farei todo o possível
E se me permitirem, farei até o impossível
Até logo, meu caro Morfeu, besouro-bombardeiro...
O autor
Não demorou a que Brigite acordasse. Isso muito ajudou o Poeta Tancredo, pois estava ansioso, que mal podia se controlar...
Brigite
Bom dia, meu amor!
Seu olhar festivo, e como sempre transparente
Mostra a felicidade em que se encontra
Porém, mostra também ansiedade...
Poeta Tancredo
Seus olhos mal estão abertos
E decifram cada sentimento do meu ser
Realmente, estou muito feliz
E também ansioso, muito ansioso...
Hoje sei que meus sonhos, embora assombrosos
Não são apenas sonhos, são viagens reais
Mas não viagens de turismo
Destas que os humanos tanto se satisfazem
Não. Minhas viagens eram de negócios:
Ensinamentos, reflexões e vida...
Brigite
Meus olhos mal estão abertos
E se dedicam exclusivamente a você...
Sempre soube que os meus sonhos, também assombrosos
Não eram apenas sonhos, e sim viagens...
Conte-me, pois, qual é o motivo para tamanha felicidade?
Poeta Tancredo
Quando recebemos o sorriso da amizade
Estamos certos que vem com pureza
Quando temos a medida certa para ofertarmos
Nosso sorriso se oferece com graciosidade
É assim:
O presente que recebi...
Será a oferta que darei...
Meus olhos transbordam felicidade
Meu corpo transborda alegria
Meu ser é feliz...
Serei o Conselheiro do Poeta Neu
Aquele que o orientará para a decisão correta
Um sorriso em troca de um sorriso...
O autor
Durante algumas horas, o Poeta Tancredo e sua amada Brigite conversaram sobre a vida.
Às catorze horas em ponto, o Poeta Neu com os mesmos presentes de sempre, bateu à porta do quarto: trinta e três...
Poeta Tancredo (feliz)
Entre!
Abra a porta, e entre!
Poeta Neu (dentro do quarto)
Bom dia, Poeta Tancredo!
Bom dia, Srta. Brigite!
Trinta dias se passaram
E eis-me aqui novamente
Não me acompanha nenhum companheiro
Apenas os mesmos presentes de sempre...
Dentro desse quarto me sinto em casa
As paredes, as portas, as janelas
Enfim, tudo tem ar da graça...
Se o convite fosse feito
Ficaria junto a vocês para sempre
Mas, sei que isso não é possível
Então, me conforto com estas visitas...
Poeta Tancredo (ainda mais feliz)
Bom dia, meu grande amigo, Poeta Neu
Faria o convite se assim me permitissem
É um prazer tê-lo em nosso recanto
Que tanto se encanta com este ser encantado...
Vejo com estes meus ouvidos atentos
Que hoje a sua voz é mais ouvida
Que outrora pudemos ouvi-la...
Seu desembaraço me causa alegria
Porém, sinto também uma expressão vazia...
Poeta Neu
O vazio é meu companheiro fiel
Não reclama das atitudes tomadas
Tampouco se manifesta contrário a elas...
A vida me atropela
O mundo me atropela
Eu atropelo-me...
Saio a busca de respostas
Mas esqueço quais são as perguntas
Tomo rumos sem rumo
Freqüento os labirintos da mediocridade...
Sim. Estou vazio por ser vazio
Meus olhos são vazios
Transbordo vácuo...
Brigite
Não! Você não é este vazio
Aliás, você não é vazio algum...
Assiste a seu filme
Apenas aqueles que não são normais
Pois aos normais cabe apenas o normal...
Ensina-se a lição em todas as escolas
Porém, os alunos têm critérios diferentes
Alguns assistem as aulas com muito interesse
E assimilam todos os conhecimentos
Enquanto outros, apenas marcam presença
São números e nomes a mais numa caderneta escolar...
Não! Você não é vazio...
Poeta Tancredo
Bravo! Bravo! Bravo!
Ah! Se todos os homens tivessem ao lado
Ao menos por um segundo
Uma amante como Brigite...
As ruas e avenidas seriam todas alamedas
Os rios abrigariam somente peixes saudáveis
Os mares não mais entrariam em ressaca
O ar não esconderia as suas virtudes
E em todos os lares haveria paz...
Bravo! Bravo! Bravo!
Poeta Neu
A fêmea é o ponto de equilíbrio
E mais, é o controle de todas as ações...
Respeito a imagem de cada fêmea...
Brigite
Somos as geradoras da vida
E como tal, necessitamos de vida plena...
Poeta Tancredo
Já sabemos que o Poeta Neu não é vazio
Que apenas atravessa momentos de indecisão
E também sabemos que terei material
Para escrever até a minha última letra...
Sei que estou e sou feliz
Que recebo as palavras certas
Nos momentos mais precisos
Que o sorriso de um amigo vem uma vez por mês
E está aqui na minha frente...
As indecisões são companheiras da solidão
Quanto mais a sós estamos
Mais, e mais hesitantes ficamos...
Você conhece Morfeu, o besouro-bombardeiro?
Poeta Neu (com ar de espanto)
Não! Não o conheço! E deveria!?
Poeta Tancredo (ansioso)
Não. Fica apenas o suspense
E quem sabe, a resposta...
O acaso é o senhor das reflexões
Não esperamos por ele, e eis que surge
Às vezes, travestido de doenças incuráveis
Outras tantas é o espermatozóide
Que fecundou aquele óvulo
Até então, estéril...
A incerteza é a senhora das certezas
Questionamos aqui, perguntamos acolá
E eis que surge por encanto a resposta
Quanto mais incertezas tivermos
Mais, e mais certezas obteremos
Basta questionar...
Não. Não importa conhecê-lo
Fica apenas o registro...
Poeta Neu
Ocupo-me de questionar a tudo
Sonhos, realidade
Imaginação, circunstâncias
O preto, o branco
A magia, a ciência
Enfim, rascunho a vida em retalhos
Se este tal Morfeu, besouro-bombardeiro
É o acaso
Ou até a certeza para as minhas incertezas
Que eu conheça cada uma de suas palavras
Que eu absorva cada um de seus gestos
E que o registro não fique guardado
Em baús empoeirados e perdidos no tempo...
Que saia o suspense
E que entre a resposta...
Poeta Tancredo (mais ansioso)
Meus pensamentos nunca se camuflaram
São transparentes a quem tem transparência
E seus pensamentos também não se camuflam
Tornam-se transparentes à minha frente...
O suspense jamais será suspense entre nós
E nem o mistério será mistério
As revelações sairão naturalmente
Como naturais nós somos...
A decisão é somente sua
Ninguém pode interferir
Ou mesmo obrigá-lo
Afinal, apenas você tem o convite...
Não questione o por que
Encare com naturalidade
E saiba que muitos gostariam de ir a esta excursão
Mas, você é o escolhido...
Estarei sempre ao seu lado
Mesmo nunca estando presente
Eu estarei lá
Então, vá!
Cena 19
Durante cinqüenta e três dias, o Poeta Neu pensou, e repensou nas palavras de seu amigo, o Poeta Tancredo. Vagou por ruas e avenidas, que não eram alamedas, e as peças se encaixavam uma a uma, completando assim o quebra-cabeça.
A decisão estava tomada, e não havia mais como voltar...
Ângelo
Oi!
Poeta Neu
Aceito!