No porão...

Naquele instante, o poeta Neu despertou, tornou a cochilar e, sonhou novamente...

Poeta Neu

Olá!

Há alguém aí no porão?

Olá!

A tranca da porta está emperrada, mas mesmo assim consigo abri-la...

Poeta Neu

Olá!

Há alguém aí embaixo?

Olá!

Nem mesmo o que falo

Consigo ver

Nenhum feixe de luz

Apenas trevas

Mesmo assim, insisto em chamar por alguém…

Olá!

Há alguém aí no porão?

Não posso ouvir a minha voz

Ela ecoa num labirinto

E não retorna aos meus olhos...

Desço o primeiro degrau sem mesmo saber

Se existe qualquer apoio

Talvez um corrimão

Mas não tem apoio, tampouco corrimão

São degraus para se descer

Apenas descer...

Não insisto mais nos chamados

Já era sabedor

Do silêncio profundo dos porões

Nem mesmo ratos ou baratas

Morcegos ou percevejos...

Mais um degrau é conquistado

Para baixo

Ainda longe de terra firme

É estranho, sinto-me mais seguro nessa escuridão

E os degraus aparecem para os meus pés

Um a um

Numa contagem infinita de sete

Sete degraus transpostos...

O solo frio queima os meus pés

Penso em voltar pela mesma escada

Até ensaio a volta

Mas a escada desapareceu...

Momentos de tensão e terror

Pavor

Medo absoluto é o estado em que me encontro

Tento acertar a direção contrária

E penetro mais inconsciente

Pelo escuro labirinto

Momento exato para relaxar

Refletir, ou morrer...

Desisto de chamar por alguém

E caminho

Pé ante o pé até uma parede vazia

Cortina exposta sem cores

Nem padrão

Apenas uma parede vazia

Apenas uma cortina sem cor...

Num rápido intervalo

O silêncio tétrico e mortal

Dá lugar a um breve estampido

Espécie de saco plástico

Acompanhado de uma respiração ofegante…

Olá!

Há mais alguém aqui no porão?

Mais silêncio tétrico

Mais respiração ofegante

Dolorida...

Olá!

Há mais alguém aqui?

Como um mar de lama

Construído à base de canal de esgoto humano

Um odor insuportável

Aproxima-se cada vez mais de mim...

Um garoto

Oi!

Inocente criatura das trevas iluminadas por lâmpadas

Seu brilho ofusca a minha perene cegueira

Mas sinto e, mesmo sufocado

Ofegante

E nessa eterna escuridão

Sinto o perfume clássico da sensatez…

O poeta Neu

Quem é você?

Estamos apenas no porão

Mas jamais imaginava

Qualquer vida humana por aqui

Imaginava estar só...

Quem é você?

O garoto

E está só

Não sou absolutamente ninguém

Sou o momento esquecido dos humanos

O outro lado da cerca

Porão

Sou aquele ou aquilo

A quem ninguém pode se aproximar

Sou a borrasca

O que não existe

O desprezível

O desprezado

O porão...

O poeta Neu

Não!

Você fede a esgoto

Cheira a enxofre

Lama densa e pastosa

Os vômitos de todos os humanos caíram sobre você

Mas entendo o que chama

De perfume clássico da sensatez

Pois mesmo fedendo a esgoto

Cheirando a enxofre

Mesmo com toda a lama e vômitos

Que são nossos

Não seus

Sinto o tal perfume

Exalar o que todos supõem

Ser a fétida razão de sua origem

Mas não

É o seu perfume clássico da sensatez...

O garoto

Está louco!

Sem juízo!

Fizeram-me podridão

Então

Sou podridão...

O poeta Neu

Não!

Amigo!

Você nunca foi o que pensa que é

Pois bem o disse

Que lhe fizeram essa podridão…

Não é podridão, não

É o inferno, sim

Mas

Você é o paraíso que deixamos de amar...

O garoto

Tenho vontade de sair desse lugar

Mas sumiram com as escadas

A porta de saída é tão alta

Não conseguiria atingi-la

E se conseguisse

Ela está emperrada

Não abre

Mas tenho vontade de sair desse porão

Ver a luz do sol!

O poeta Neu

Posso lhe ajudar a sair daqui!

O garoto

Como!?

O poeta Neu

Levantarei-o

E se apoiará em meu ombro

Abrirá a porta

E penetrará no seu paraíso...

O garoto

E você?

Ficará aqui!?

O poeta Neu

Ao menos não tranque a porta

No momento de sair...

O garoto

Até breve!

Homem do perfume clássico da sensatez

Até breveeeeeee!

O poeta Neu

Novamente o mesmo silêncio tétrico

A mesma escuridão mórbida

O mesmo labirinto

E a mesma parede vazia...

Olá!

Há mais alguém no porão?

Olá!

Resolvo calar e parar

Juntar-me ao silêncio do silêncio

Deitar meu corpo nesse chão frio

Vazio

Aguardar por outros estampidos

Outros sacos de plástico

Outras colas de sapateiro…

Fecho os olhos e

Durmo...

Alguém

Oi!