Amsterdam I
Do que me lembro é do lugar,
dos postais ilustrados - o fulgurante dia onde a memória
emerge dum tempo (espaço) sem limites. Acordado pelas
altas horas: perdia-me obcecado a compreender o exercício
de frases irreais e avaliava para lá das cortinas o que vai
morrendo nas luzes rápidas (amarelas) de um céu aceso.
Um quarto, o quarto sob os astros, fotografias que deixam
da realidade um silvo marítimo; sombras enigmáticas à
distância dos navios que partem no nevoeiro; a roupa colada
aos membros; com o rosto da véspera nos espelhos.
Lembro-me do lugar,
da ontológica leveza do teu corpo poisado na penumbra.
Uma queimadura subsiste enquanto as veredas enevoadas
do sono me confundem e retenho no olhar o perfil sibilante
da cidade agora deserta; armazéns seculares anunciam
uma solidão líquida que permanece - circulara pelos canais
digerindo um esquecimento melancólico.
A ontológica beleza das sombras nos teus olhos.
Essa despedida envolve-me sem equívocos; não há a música
interna para ouvir, aquela voz que os lábios toquem pelas
horas do crepúsculo; esse rumor nos degraus do desejo -
por que não fixar a textura débil dos sentimentos, a verdade
do que se percepciona perante o nada: o dilúvio que fica de
um encontro solene?
Um quarto sob os astros, a alegria empírea colada aos
membros. Repito a beleza extrema deste lugar alucinado.