SOBRE O BRANCO DO PAPEL

A folha caiu da árvore presa a um raio de sol e brilhou por um instante, como uma palavra recém-nascida entre as mortas do inverno. A poucos passos dali, tudo continuou inocente da pequena folha caída com o leve raio de sol. A inocência salva do Inferno e tantos serão salvos, que meu coração fica por um instante tão feliz, até mesmo por ti, meu amor, que és tão infeliz porque, de repente, tua tristeza torna-se também uma criança inocente brincando nisso que chamo minha alma, como o menino Jesus com Alberto Caeiro, a brincarem no degrau da casa, imagem que me ocorre para que eu possa dizer de algum modo tangível como acolhe-me teu ser.

Neste ano, a paineira em frente ao prédio onde moro não floresceu como nos outros anos seu outono primaveril, assim como não tem florescido nunca a primavera que sonhei para os teus olhos.

É preciso, urgente, que a buzina de um carro me acorde deste sortilégio romântico. Preciso reerguer-me, enérgica, como Álvaro de Campos por um instante, no seu poema. Preciso de um automóvel veloz, não há tabacaria por perto, automóvel que, mesmo me atropelando será, apenas e tão somente, uma palavra a mais, como o não poderia deixar de ser.

Há quanto tempo mesmo que aquela folha presa a um raio de sol caiu entre as pequenas mortas deste parque, cercado de automóveis por todos os lados? Nada distingue das outras essa folha amarelada caída sobre o branco do papel.