[Eu Destôo, Compreende?]
[Espanta-me que ainda haja gente compulsivamente preocupada com o fim das coisas... Eu apenas escrevo na areia!]
Nem me custava nada, nada não! Era só eu seguir a fuga da luz do sol sobre os telhados cansados das fainas do dia, engolir a tristeza de um travo na garganta determinado pelo poente já rasante, deitando laivos de sangue na poeira vermelha - era só disto que eu precisava, só disto, caminhar nos engasgos da luz do dia! Tudo é uma questão de estar vivo, naquela hora, naquele lugar - e eu estava, um pé cá, outro lá, no limite de dois mundos, dois tempos!
Eu seguia até o limite do calçamento de basalto, o fim-de-linha, a ponta-de-rua, e entrava na liberdade sem lei da parte pelada da rua, lugar sem calçadas, sem meio-fio, muros quebrados, cães engalfinhados numa briga, criança catarrenta escanchada na anca da mãe, aleijado mulambento em um triciclo, cego tocando viola para tirar esmola, um par de éguas magras pastando o capim ralo que cresce nos barrancos, e poças de cinzenta água servida que escorre em rasos regos-d'água. Eu repito: não; andar ali, naquela hora, não me custava nada; o que eu fazia era apenas seguir o rumo do fim do dia, tomando sempre o sentido contrário ao dos enterros de pobre vindos das cabeceiras da cidade. E os meus olhos, eram sempre sem medida, jamais se fartavam - sou resumido assim.
Parava naquele armazém chinfrim da esquina, dava uma espiada na mesa do jogo de dominó, na do jogo de palito, e por sobre um chiado de dente podre vindo de um canto do armazém, eu escutava o finalzinho de um tango de putaria, o "Vermelho 27". Comia, sem morrer, até hoje nunca morri, cinco ou seis salsichas de lata com pão entardecido, e só então, boca amargando com o desnexo da vida, eu saía para o aberto da rua e dobrava a esquina, ia pra casa.
Enquanto caminhava, nem cantar uns trechos daquele tango eu podia; a minha voz se trancava na garganta de tanto ver, na cadência frouxa do dia, os homens esfalfados da vida levada assim, da mão pra boca.
Mas torno a repetir: era fácil, bem fácil a minha volta para casa, empurrando aquele carrinho de picolés! Mera questão de soltar a barbela do chapéu de palha, jogá-lo para as costas, deixar o suor da testa secar ao vento frio da tarde - e abrir os olhos! Fácil, fácil; se eu dei conta, então, qualquer um daria. Eu sei que eu destôo só pelo olhar mais demorado nas coisas e nas gentes, um cadinho só mais demorado que o usual. Um cadinho só... Eu destôo, compreende? Mas sei das travessias...
[Penas do Desterro, 01 de julho de 2008]